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Estado de Minas DA ARQUIBANCADA

O jornalista Nirlando Beirão foi o único atleticano corintiano do mundo

O jornalista que conhecia os bastidores do poder e os meandros da história podia escrever de qualquer coisa, pois conhecia de tudo


postado em 02/05/2020 04:00

Nirlando Beirão, mineiro de Belo Horizonte, era visto por muitos como um guru, um mestre do jornalismo(foto: Marcos Vilas Boas/Divulgação)
Nirlando Beirão, mineiro de Belo Horizonte, era visto por muitos como um guru, um mestre do jornalismo (foto: Marcos Vilas Boas/Divulgação)


Quando eu cheguei em São Paulo em 1996, contratado pela revista Playboy, não havia um jovem jornalista que não desejasse ser Nirlando Beirão. O Nirla habitava todos os mundos possíveis. Era amigo das celebridades e dava-se bem como colunista social. Conhecia os bastidores do poder e os meandros da história, e podia escrever sobre política. Foi de Caras a CartaCapital, sempre a desfilar o melhor dos textos da imprensa (de gerúndio, bastava a sua assinatura). Conhecia vinhos e literatura, futebol e televisão. Nirla morreu quinta-feira. Era o cara mais legal do mundo.

“Morreu Nirlando Beirão”, escreveu Afonso Borges, jornalista criador do projeto Sempre Um Papo, “morreu a palavra em estado de elegância. Em pessoa, em Nirlando. Este mineiro de Belo Horizonte, da melhor cepa do jornalismo, era o que a gente podia chamar de Guru. Sim, vou repetir: um Guru, um Mestre, um guia, um sujeito admirável, que a gente queria ser e imitar”.

Quando ele, Nirlando, chegou a São Paulo, tratava-se de um atleticano de muitos costados (seu pai, o seu Beirão, era atleticano fanático, esse pleonasmo). Por isso, repórter do extinto Jornal da Tarde, escalou-se a si mesmo para cobrir o Galo, campeão brasileiro em 1971. Na cola de Telê Santana, decidiu acompanhá-lo na promessa que o técnico fizera se levantasse a taça: caminhar de Belo Horizonte a Congonhas do Campo, cerca de 80 quilômetros. E lá foi o Nirla, o Telê e um fotógrafo.

À medida que avançava a diminuta procissão, BR-040 afora, atleticanos que voltavam do Rio não acreditavam que era mesmo Telê o sujeito de calças compridas e camisa sobre o ombro a caminhar no acostamento. Então, carros e ônibus paravam, Telê era carregado pelo povo, uma gente embebida na mais louca felicidade e, bem, numa cachaça danada. A caminhada não rendia. Num raro momento de paz, alguém teve a ideia infame de pegar um táxi, driblar Deus e a atleticanada, desembarcar num trevo de Congonhas e dar as caras como se tivessem vindo no torturante arrasta-pé. E foi assim que se deu, o Nirla testemunha e cúmplice da história.

Eu gostava de culpar o Nirlando pelos infortúnios do Atlético. Gostava de encher o seu saco dizendo que todo o nosso azar, todo roubo e injustiça dos quais fomos vítimas tinham origem naquela promessa não cumprida, da qual ele era, na melhor das hipóteses, cúmplice. Na pior, o autor intelectual. O próprio Telê comera o pão amassado naquela malfadada travessia, tendo perdido a Copa Mundo de 1982, a de 1986 e a Copa União de 1987.

O Nirla não ligava, ria, a mexer na barba grisalha e espessa, cacoete que era a sua cara. Quando Telê morreu, e eu era editor do jornal Estado de São Paulo, convidei o Mestre a recontar a história, na esperança de algum esclarecimento que pudesse reverter a imagem do Atlético para com o Deus. Ganhamos um textaço, como de costume, mas o Galo seguiu perdendo. (Somente em 2013, quando por fim se desfez a uruca, é que um grupo de torcedores cumpriu a velha promessa, incentivado por este colunista ateu, devoto apenas de São Víctor.)

Eu gostava de encher o Nirla com essa história porque o Nirla tinha se tornado corintiano. Um atleticano corintiano, sim, existiu isso. Junto com Washington Olivetto, ele chegou a escrever um livro sobre o Corinthians. Fiz questão de ir ao lançamento trajando na lapela um escudo do Galo (escudugalo). Nos meus anos de São Paulo, o Corinthians foi se transfigurando em Cruzeiro e Flamengo, o time oficial, da Globo e da Odebrecht. Como o Nirlando podia ser Corinthians?

Pois ele era Corinthians porque o Corinthians não ganhava, me esclareceu o próprio certa vez, diante da minha enjoada insistência no assunto. Até 1977, quando um título paulista pôs fim a 23 anos de um completo jejum, o Corinthians era de alguma forma uma espécie do Atlético que viríamos a ser justamente a partir de 77, quando impediram Reinaldo de jogar a final e perdemos o título nos pênaltis e invictos. Corintianos e atleticanos, em mesozoicas eras, foram aliados, ambos alvinegros, ambos do povo e da favela, ambos sofredores. O Nirla, com sua barba e sua palavra “em estado de elegância”, militou ao lado do sofredor, como os grandes homens.

Vá em paz, meu amigo.


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