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Estado de Minas DA ARQUIBANCADA

Feliz ano velho

No sofá, ela escutou atenta o gol contra o Uberlândia enquanto eu aguardava do outro lado do fone de ouvido. 'É bom ouvir um gol do Galo, né?', comentei


postado em 25/01/2020 04:00 / atualizado em 24/01/2020 21:06

Pela primeira rodada do Campeonato Mineiro, o Atlético venceu o Uberlândia por 1 a 0, no Parque do Sabiá(foto: Bruno Cantini/Atletico)
Pela primeira rodada do Campeonato Mineiro, o Atlético venceu o Uberlândia por 1 a 0, no Parque do Sabiá (foto: Bruno Cantini/Atletico)


Em 31 de dezembro, há 26 dias, ela foi diagnosticada com um câncer. Eu olhei a ressonância, havia um círculo, vertiginoso, no lóbulo frontal direito. Do tamanho de um limão. Ela ficou na UTI do hospital, eu dirigi pela cidade vazia até um Íbis que localizei no Google. Esperei por 30 minutos até que pudesse conseguir um quarto. No lobby do hotel, uma festa de réveillon se desenrolava. Entre a tarde daquele dia e a noite do diagnóstico, meu castelo ruiu. Como no passe de uma mágica macabra, deixei de pertencer àquele mundo, um zumbi desconvidado para a passagem do ano.

Há 26 dias, alterno entre o desespero total e a força saída não sei de onde. Me ocorre a perfeição do ser humano, ainda que diante da tragédia dessa máquina pifada. A gente se ajusta, o coração volta a bater suave, a alegria te colhe na mais absoluta improbabilidade, o sono, uma noite, acaba por ninar seus pesadelos, vencidos por uma paz que você imaginava (imagina) para sempre perdida, no passado e no futuro.

Tudo, no entanto, é traição. De repente, a noite torna-se de uma melancolia cortante. Te assalta o pensamento no seu filho pequeno, nas viagens que você fez e naquelas que você não fez. Os planos, os projetos. A ideia da morte a acercar-se, tão injusta e precoce, tão doída. E então, de novo, você retorna à condição do zumbi, arrasta-se, mergulha no poço escuro e sem fundo. Lamenta a inexistência de Deus: somos nós com a gente mesmo, fodeu.

Na terça-feira passada, ela voltou para casa. Frágil, tadinha, precisa reaprender a andar. Espera-se que o cérebro, por ele mesmo, corrija o déficit que ficou em sua visão periférica, o que a faz trombar nas coisas, desajeitada. Em duas semanas, ela começará o tratamento. Até lá, viveremos em paz, na guerra contra os pensamentos sombrios, o diabo a nos cutucar com o tridente.

Ela voltou pra casa e sentou-se no sofá. Nesses dias intermináveis, me lembrei de um amigo querido vítima de ELA. Diagnosticado com a terrível doença degenerativa, não quis viajar para onde nunca fora, não quis, sei lá, saltar de paraquedas — quis estar em casa, entre os seus, comendo nos velhos restaurantes, escrevendo suas velhas laudas de um velho jornalismo.

Ela queria, no máximo, um banho de mar. Eu sonhava estar com ela naquele sofá, assistindo a mais um tedioso filme infantil com ela e o Francisco, na luta contra o sono, implacável. Numa conversa no hospital, sonhamos juntos o comezinho da vida. Éramos felizes e sabíamos, mas não sabíamos que éramos tão felizes. Feliz ano velho.

Ela se sentou no sofá e eu coloquei meus fones de ouvido. Achei um disparate ligar a tevê no jogo do Galo, ainda que o primeiro do ano. Ouvi pelo rádio, apenas um fone no ouvido direito, o esquerdo reservado para alguma demanda, o remédio, a caminhada até o banheiro. A peleja soava aos meus ouvidos — ao meu ouvido, digo — de desimportância colossal. Agora tinha um Allan, um Hyoran, um Dudamel, o Gabriel tinha voltado. Não havia Luan, não havia Leo Silva. O Caixa me informava sobre um mundo novo do qual eu me apartara no lusco-fusco de 2019.

Ela estava no sofá, ainda, quando o juiz apitou o pênalti. Apenas informei o Francisco sobre o ocorrido. Ficamos em silêncio. Fábio Santos bateu e fez. Eu tirei o meu fone de ouvido e passei a ela. O grito de gol, o hino tocando no fundo. Ela nunca foi de futebol. No primeiro carnaval que passamos juntos, eu levei para o Rio de Janeiro uma crista de Galo que antigamente se vendia na sede de Lourdes. Volta e meia alguém me dirigia o grito monumental, aquele que tece as nossas manhãs desde sempre: “Gaaaaaaalo”.

Ela, filha de um inglês cuja família tinha preferência pelo críquete, não sabia do que se tratava aquela estranha correspondência entre espécimes de uma fauna misteriosa. Foi a primeira vez que expliquei a ela sobre o Atlético – o Galo. Com o passar dos anos, era o Atlético que me explicava. Eu era o Atlético, seus azares e sua paixão. E ela entendeu tudo. E viu comigo cada vitória do Galo na série B (e como eu chorava), e celebrou como um de nós a Libertadores de 2013, devota de São Victor.

No sofá, ela escutou atenta o gol contra o Uberlândia enquanto eu aguardava do outro lado do fone de ouvido. “É bom ouvir um gol do Galo, né?”, comentei, como a relembrar a nossa conversa, o comezinho da vida. Um gol como tantos outros, o milésimo de Pelé em sua forma mais banal possível. E eu fui chorar escondido no banheiro a beleza de estarmos vivos para ouvir aquilo. Te amo, Fabi.

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