Jornal Estado de Minas

No mundo da hiperinformação, falta o velho espírito comunitário

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Imagine uma cena bem longe no tempo: 1.500 anos atrás, um pequeno grupo de aldeãos, num vilarejo medieval, quase sem notícias, isolados e, por suposto, sem jornais, sem rádio, sem televisão, sem internet. Agora pense numa outra cena, atual; a sua própria vida, por exemplo: na cidade grande, com milhares de pessoas ao redor, viajando, abastecido com televisão, celular, computadores, internet e milhões de informações. A pergunta é a seguinte: onde você acha que se encontraria uma maior consolidação da ideia de comunidade e haveria mais possibilidades de formar um grupo humano articulado e com sentido? A resposta parece não deixar dúvidas: na segunda opção, pois a comunicação abundante e a informação atualizada e rápida são fatores necessários e definitivos para a formação de comunidades na sociedade.





Para alguns pensadores atuais, a resposta não parece tão óbvia. O filósofo mais lido do momento, o coreano Byung Chul Han (Seul, 1959), é um deles. Atualmente professor na Universidade das Artes de Berlim, Han deu-se a conhecer ao grande público com o seu primeiro ensaio, A sociedade do cansaço, publicado já há mais de 10 anos e sucesso absoluto de vendas. No seu último trabalho (La desaparición de los rituales, 2020), ainda sem tradução ao português, Han faz uma crítica acurada ao que ele chama de “desaparecimento da comunidade por causa do sumiço dos rituais na sociedade”. Tema realmente instigante e atual, mormente nesse momento de pandemia e isolamento que estamos vivendo e que afeta, também e sobremaneira, ao mundo da educação.

É verdade que estamos cada vez mais interconectados, diz ele, mas essa interconexão não traz nem proximidade nem vinculação. A solidão e o isolamento aumentaram, apesar da hiperinformação e das mídias sociais. O motivo é evidente: as redes sociais colocam “o eu” no centro da comunicação, em detrimento da comunidade, dos outros. Somos instigados continuamente a expor as nossas opiniões, os nossos desejos e até contar e exibir a nossa vida para todos, de forma glamorosa e irreal. É um tremendo jogo narcísico de espelhos, no qual todo mundo pratica o culto e a adoração ao ego, incentivados por esse cenário midiático que nos fascina e seduz e que cria em nós sensações efêmeras de glória, que nos consolidam no egoísmo e que nos afastam da realidade diária e da comunidade. Prevalece, assim, a “comunicação sem comunidade”.

Nos rituais e na religião, as coisas são tratadas com respeito e admiração. Dessa forma, nos afastam do ego e a atenção se centra em desejos que não podemos alcançar por nós mesmos, de forma individualizada. Os rituais possuem um fator de repetição, que é estimulante e vivificador. A proposta da sociedade atual, pelo contrário, é de esgotamento das coisas; elas são consumidas e, assim, destruídas. Ela nos empurra a um consumo frenético de novos estímulos, que vão nos propondo novas experiências e causando em nós uma sensação de vazio.





Han propõe a criação e invenção de novos jogos coletivos, festas, novas formas de ação para além do ego, do desejo e do consumo desenfreado. A felicidade e a liberdade, dois conceitos básicos para a realização pessoal, devem de ser procurados e construídos a partir da comunidade.

Nessa linha se manifesta também o papa Francisco. No documento de trabalho e convocação do “Pacto Global pela Educação” (12 de setembro de 2019), o papa atina a dizer que as atuais “fraturas” (homem/natureza, ricos/pobres, masculino/feminino, nacional/estrangeiro, fratura racial) têm sua raiz na egolatria da cultura excessivamente centrada na soberania do homem. A educação deve confrontar, e não reforçar, essa idolatria do eu. A palavra capaz de ajudar-nos a superar isso tudo é “juntos”.

A abertura ao outro, a fraternidade como dado antropológico e categoria cultural, devem orientar o pacto global da “aldeia educativa”, segundo ele. Falamos de educação integral e inclusiva, de escuta paciente e diálogo construtivo, fatores necessários para consolidar a comunidade.





A crise do coronavírus tem agravado os sintomas de isolamento e a desaparição dos rituais, fazendo-nos sentir a falta da proximidade, do contato físico; por incrível que pareça, o digital tem sido motivo de separação e afastamento entre as pessoas. Perdemos a experiência comunitária, embora sigamos comunicando uns com os outros, conectados digitalmente. Falta a comunidade, visível e palpável fisicamente; a comunidade autêntica, que é hospitaleira, que não elimina o outro, o estrangeiro, o que pensa diferente. Que é contrária à proposta que está no cerne da sociedade atual, sem rituais e dominada pelo medo e o ressentimento.

Quais os rituais que a sua escola deve resgatar ou criar e que permitam a consolidação da comunidade escolar e seus vínculos?

Afinal, não é isso o que forma, o que educa? Pense: o que vincula, estabelece laços sólidos e atemporais entre, por exemplo, os ex-alunos da sua instituição? O que os motiva a juntar-se em encontros anuais ou esporádicos para jogar conversa fora, celebrar, rir juntos e partilhar suas vidas? São as aulas que tiveram, os conteúdos, o brilhantismo, as notas, as circulares? É claro que não.

O centro são os rituais afetivos, os momentos de celebração, as festas, as pessoas significativas, os choros, os abraços, a possibilidade de resgate do atemporal, da festa espiritual!

Tente na sua escola esse resgate e redescoberta após pandemia.

Quem sabe?

Francisco Morales Cano
Professor e consultor
Diretor da Doxa Educacional

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