Jornal Estado de Minas

FILOSOFIA EXPLICADINHA

O dia que o Demônio aprendeu com o Patriarcado

 

Com o avanço da inteligência artificial e a diminuição do tempo de leitura, o enxame dos podcasts de autoajuda e as palestras sobre felicidade, o crescimento do sertanejo universitário e o aumento das academias de crossfit, o demônio começou a ser visto como um ser sem repertório, em plena crise de consciência. Pois, ao contrário do que muitos pensam, ele também tem seus dilemas.





 

Após um longo período de reflexão, topou o desafio de fazer um workshop na terra. Com foco no resultado, decidiu por um review em seu estoque de maldade, mas não embarcou nessa jornada de forma desavisada. Procurou, antes de tudo, uma grande referência para adquirir certa expertise.

 

Lógico que o lugar mais propício para essa caminhada seria navegar pelos mares infernais das redes sociais. Fez imersão no Instagram, no antigo Twitter (agora X) e em algumas páginas de ódio online. Acabou encontrando um ser maligno à sua altura, a quem, enfim, poderia chamar de mentor: o patriarcado colonizador, apontado, pela opinião pública, como o grande mal do século.  

 

Da guerra na Ucrânia à falta de verba para os doutorandos em Letras Ocultas e Ciências apagadas, todas as mazelas do mundo eram atribuídas ao “patriarcado”. Então, o capiroto percebeu o momento de adotar uma postura mais arrojada, no estilo daquele empreendedor júnior que acabou de ver um vídeo do Primo Rico. Era a hora de sair da zona de conforto.





 

Chegou à terra com o firme propósito de encontrar seu mestre. Afinal de contas, não é só porque o Diabo é tão velho quanto a humanidade que ele pode se dar ao luxo de dispensar uma boa reciclagem. Como ficaria diante de seu time, sendo visto como obsoleto e tradicionalista? Sempre surgirão novas formas de maldade, na medida em que as ações, agora, são criadas pelos algoritmos do tempo. O fato era que seu reinado estava em risco.

 

Com o propósito de não ser notado, se disfarçou de pessoa do bem, colocando o traje daqueles que desejam salvar o mundo a partir de cliques, prezando por uma dieta balanceada enquanto carregam a garrafinha de água para todo lugar. Dispensando o canudinho de plástico e vociferando contra o garçom, passou a frequentar shows de banda alternativa nos bares da periferia, sempre pronto a se indignar diante de qualquer injustiça colonialista, porta-bandeira da mais nova modinha de pensamento. O diabo tem suas artimanhas.

 

Sem precisar procurar muito, encontrou seu tutor. O patriarcado, em pessoa, tinha descido do ônibus e caminhava a passos largos, na espreita de encontrar sua próxima vítima. Um pronome colocado de forma equivocada, uma frase construída sem o devido embasamento político ou a herança de qualquer gesto denunciariam, a qualquer momento, sua verdadeira condição.





 

Ao parar na primeira lanchonete, reparou em seu jeito de sorver o café com açúcar. Nada mais imperialista que isso. Com o gesto de acender um cigarro na banca da esquina, ele deixava transparecer que sabia de tudo. Na verdade, era um pactário do domínio europeu, na certeza de que os gregos, no século V antes de Cristo, ao proporem a democracia, a mitologia e a filosofia, já possuíam a intenção de construir uma civilização opressora, competitiva e excludente, com o claro objetivo de colonizar as mentes brilhantes do Brasil. Nu! Ele era realmente mal.

 

Aproveitando a hora do almoço para pagar as contas na lotérica, o agente do mal assumia sua subserviência ao capitalismo. No pouco tempo que sobrava, ligava o rádio para colocar em dia as principais notícias sobre futebol. Essa atitude alienada desconsiderava a relevância do debate acadêmico acerca das condições homogeneizantes da indústria cultural e a importância da linguagem para frear o ataque abusivo dos agentes norte-americanos infiltrados na América Latina. Eita! Estava na cara que aquele sujeito era o propagador do ódio.

 

Ao final do dia, antes de chegar em casa, resolveu dar uma passada no boteco. Bebeu cerveja, contou piadas e conversou fiado, demonstrando sua falta de empatia com as novas pesquisas acadêmicas que teorizavam a respeito da estrutura excludente da sociedade brasileira. À noite, ignorando a importância da decolonialidade, rezou antes de dormir. Era a coroação de um dia de maldade, confessando sua conivência com Adão.

 

 

Fazendo um brainstorm pós jornada, o Cramulhão agradeceu a oportunidade do benchmarking, prometendo voltar mais vezes. Captou material suficiente para investir em seu desenvolvimento pessoal, na certeza de nunca mais seria o mesmo. Ganhou visão holística e compreendeu, principalmente, que para praticar o mal basta se especializar na simplificação das coisas, achando sempre um culpado para todos os problemas humanos.