Jornal Estado de Minas

FILOSOFIA EXPLICADINHA

Militares e picanha, a falsa ideia da supremacia moral


Certo dia, Platão imaginou uma sociedade perfeita, governada pelos sábios, protegida pelos guerreiros e sustentada pelos comerciantes. Essa estrutura social garantiria a felicidade de todos os cidadãos, cada um em seu lugar, trabalhando em prol de uma comunidade.



Nessa sociedade imaginária, a educação teria um papel fundamental, pois seria a grande responsável pela identificação e seleção desses indivíduos. Ao longo de um processo educativo, com mais ou menos 50 anos de estudos, as pessoas que manifestassem essas habilidades naturais seriam escolhidas para exercer a função devida. Essa é a famosa República de Platão, a sofocracia, governo dos sábios.

Logicamente, essa comunidade nunca saiu do papel. O erro de Platão está no fato de achar que as virtudes morais seriam distribuídas naturalmente, isto é, alguns nascem para governar, outros para proteger e alguns para produzir riqueza.

"E os outros?", você deve estar se perguntando. O resto é só gente comum mesmo, gente como eu e você. A conclusão é simples: a ética não é um dado natural, ninguém nasce mais ou menos ético. A virtude moral é um exercício diário, uma forma de esculpir a si mesmo a partir de suas próprias escolhas. 





Ao ler a notícia a respeito dos gastos indevidos das forças militares com picanha, salgadinhos, sorvetes e refrigerantes, possivelmente servidos em coquetéis e festas, com verba destinada ao combate à COVID-19, confesso que não tive espanto. O problema está em perceber que algumas pessoas acreditam que uma determina profissão, apenas por ter passado por um devido processo formativo, vestido uma roupa diferente e falar em nome da "pátria", teria uma espécie de supremacia moral em relação aos outros estamentos sociais.


Quando falamos sobre seres humanos, devemos estar sempre atentos. Aliás, principalmente em relação a aquelas e aqueles que desejam se colocar no lugar da sumidade ética, honestidade plena e doação total por uma causa. Tenho certeza de que você, assim como eu, conhece um tanto de gente assim. O pior tipo de pessoa: o bonzinho maldoso, o honesto corrupto, o fiel traidor e por aí vai...

A ambiguidade humana que nos domina está, também, ligada àquilo que fazemos como trabalho em sociedade. Se fosse assim não haveria advogado descumpridor da lei, cancerologista fumante, repórter divulgando fake news, professor ignorante e governante individualista. Afinal, como diria o velho Freud "nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos".



A situação desconfortante, antissocial e corrupta não está apenas no gesto imoral das forças militares. Infelizmente, no meio da sociedade, em diversas atividades, qualquer profissional (ou pessoa) está à mercê dos convites para se desvirtuar de um caminho ético. O grande problema está em nutrir a crença de que um determinado grupo de pessoas, pelo simples fato de exercer uma determinada atividade profissional, teria uma espécie de supremacia moral em relação ao cidadão comum.

Desde Platão sabemos que isso não passa de uma ética imaginária, que demonstra muito mais nosso desejo por um mundo perfeito, dividido claramente entre bem e mal, herói e vilões, bandidos e mocinhos. No mundo infantil esse tipo de fantasia é comum, mas, no mundo adulto, pensar assim é apenas o reflexo de um grupo ignorante que se acostumou à preguiça intelectual.