Jornal Estado de Minas

FILOSOFIA EXPLICADINHA

Dercy e Nietzsche: quem nunca falou palavrão que atire a primeira pedra


Sabemos que a internet é uma das maiores consumidoras de vida das últimas décadas. Acho que, até agora, nenhum sociólogo pesquisou a respeito do tempo que se esvai nessa vã ilusão de navegar por imagens e hiperlinks, direcionados à rede algorítmica feita para pegar peixe pequeno que nem a gente. No entanto, mesmo nessa terra-sem-lei do mundo virtual, ainda podemos encontrar algo edificante, como as entrevistas da Dercy Gonçalves.  

 

Impossível não imaginar como o mundo seria melhor se os vídeos da Dercy fossem indicados nos consultórios médicos e nos cursos de ética. Saída terapêutica para praticamente todos os males contemporâneos, sua visão de mundo, essencialmente nietzschiana, possui um alcance de dar inveja a qualquer palestra filosófica.





Dercy é capaz de demonstrar um enfático sim à vida, exemplo de um gesto esplêndido, portadora de uma existência que não se envergonha da alegria e não se culpa pelos limites de sua própria história. Pela vida difícil que viveu, e após a fama que conquistou, tinha tudo para ser uma ressentida, esse tipo de gente carola que fica por aí com sermões e conselhos, azedando qualquer domingo com o tempero de uma segunda produtiva.

 

Ao contrário desse moralismo rasteiro, sua ética é capaz de arrancar risos como ninguém, pois anuncia o viver de verdade, sem a necessidade de teorizar a respeito da existência como fazem aqueles e aquelas que já perderam o gosto pela  vida. Ela não recua diante da presença exuberante do imponderável, muito menos foge na iminência da dor, mas enfrenta, empunhando palavrões como sinais vitais, a hipocrisia dessa gente que insiste em dividir o mundo entre limpos e sujos, santos e pecadores, esquerda e direita e tantos outros maniqueísmos que desconsideram a multiplicidade das relações humanas.  

No meio disso tudo, o único problema é que tenho que esperar meus filhos irem dormir para poder assistir a esse oráculo de Delfos, deliciando-me diante de cada frase, organicamente encaixada em cada expressão.

O que falaria do mundo contemporâneo, caso Dercy estivesse viva? (foto: Flickr/Rogério Patucci)
Apesar de acreditar na força filosófica do palavrão, elemento catártico que demonstra mais robustez que uma ideia, mais vivacidade que um conceito e mais estímulo que uma explicação, por questões edípicas, considero que ainda é cedo para ensinar isso às crianças. Melhor elas descobrirem na escola, com algum coleguinha, não é? Afinal, nunca conseguiremos ensinar tudo. E tenho convicção que isso desvirtuaria a célebre função paterna assumida no cartório.





Um palavrão bem encaixado é pura potência vital, não acha? Uma capacidade sonora que sintetiza a resposta enérgica diante dos osbstáculos do mundo. Por isso que, mesmo que na lápide, vou deixar um grande ensinamento aos meus: não confie naqueles que não falam nenhum tipo de palavrão ao longo do dia, provavelmente estão descontando a dureza de existir com formas bem mais perversas de insulto.

Chego a acreditar que só irei confiar na Indústria 5.0, na nanotecnologia, no Green Peace, na Geração Z e na revolução tecnocientífica, se eles conseguirem trazer a Dercy de volta. Do contrário, nada feito. Só ela seria capaz de nos livrar desse mundo insosso, onde as quadras de futebol viraram igreja, os botecos pós-expediente cederam lugar às academias e as pessoas começaram a achar uma graça danada em conversar com robôs.  

O fato é que viver em um mundo limpinho, higienizado e eficiente será cada vez mais insuportável. Envolto em aplicativos capazes de medir o desempenho de cada um de nós, do berço à sepultura, cercados por podcasts e vídeos que tentam explicar a relação entre água e longevidade, a origem do buraco negro e até como enriquecer em uma semana sem sair de casa, estamos nos esquecendo que é justamente a condição de errância, de incerteza, que nos faz seres únicos, evitando qualquer verdade que não chegue acompanhada de uma boa risada.

 

Talvez Dercy tenha compreendido, de forma verdadeira, a moral nietzschiana e suas nuances, demonstrando que o ser humano só chega à sua maturidade quando encara a vida com a mesma seriedade que uma criança encara uma brincadeira