Jornal Estado de Minas

ARTIGO

As regras são claras, claríssimas


Considere que os tempos agora são outros e, portanto, desnecessário falar de raça, já que, para muitos que nunca foram alvos de opressões racistas, esse é um tema que deve ser mantido em um passado remoto. Um tema que gera desconforto quando abordado e, em nome do bom convívio, melhor fingir que está tudo bem. Até porque quando alguém é racista, toda pessoa negra tem que entender que essa nunca foi a intenção. Por esse motivo, a vítima dessa violência deve relevar sem problematizar para que o ambiente de convívio permaneça leve. Isso mesmo, o ambiente não é tóxico devido ao racismo, e muito menos devido ao racista. Fica chato somente quando a pessoa negra reage, pontua, interpela, não larga para lá, não tem senso de humor o suficiente para entender que era só uma piada, racista, mas só uma piada. O problema deixa de ser novamente o racismo e se torna quem o denuncia e elenca o seu potencial bélico, que torna os espaços sociais que sempre foram insalubres para quem tem a pele preta em espaços desconfortáveis para quem, até então, se via como universal e se assusta, ou até se ofende, ao ser chamado de branco. 





Esse é um não dito, presente em todos os ambientes em que pessoas negras são toleradas, ou seja, lugares em que não estão para servir, e a princípio estão de igual para igual com seu interlocutor. É verdade que isso não consta em nenhum manual de boas maneiras, mas se a pessoa negra conseguiu ultrapassar diversas barreiras institucionais  ou estruturais e se encontra nesse espaço, é o mínimo que se espera dela.  Onde já se viu uma mulher preta se negar a despachar a mala? Pior, onde já se viu uma mulher preta interpelar o motivo pelo qual está sendo retirada por três policiais federais contra sua vontade de um avião em que ela já havia alocado sua bagagem no bagageiro? Era só não se posicionar, despachar a bagagem de mão mesmo sem nenhuma garantia de que seu notebook e outros pertences retornem para suas mãos em perfeito estado. Onde já se viu? Em uma aeronave da companhia aérea GOL.

O racista se encontra bem mais elaborado, hostil, inteligente, sarcástico e perspicaz do que antes. Ele já sabe que está sendo filmado e, por isso, ele sorri para sua vítima ao recepcioná-la ainda na porta da loja com um “posso ajudar?”. Ao mesmo tempo que te coage a pegar uma sacola ou cesto de compras que, de brinde, vem aquela expressão facial de “estou de olho, sei que você não veio aqui comprar”. O Eduardo Bonilla chama isso de racismo sorridente e alerta que são limitados os meios para se reagir. O jeito é fingir demência, sorrir de volta e fazer de conta que é um atendimento, e não uma tentativa de barrar a sua circulação no ambiente comercial ou te informar que está sendo monitorada.

Em uma das tantas entrevistas que a jornalista Glória Maria concedeu, ela disse que mesmo depois de famosa sofria racismo, mas um racismo elaborado, até porque ela era uma pessoa mais elaborada. Agora, imagina o que é lidar com o racista elaborado? O racista que não se declara como tal e que, assim como alguns machistas se autodeclaram feministas, esses se declaram antirracistas, mas vira e mexe deixam o inconsciente vazar pela boca, seja na reunião de trabalho, na aula da pós, ou no grupo de WhatsApp. Imaginou? Agora, imagina se um diretor, uma doutoranda, uma passageira de avião vira para esse cidadão elaborado e diz que ele foi racista? Essas pessoas deixam de ser cidadãs de direito e passam a ser tratadas como perturbadoras da ordem social, não só por quem praticou o racismo, mas por todos em volta que aprenderam que essa é a melhor estratégia para defender os interesses coletivos, a perpetuação do privilégio branco sistêmico, taxando essas pessoas que ousaram abrir a boca como difíceis de lidar e que não possuem perfil para estarem em determinados ambientes em que, mesmo não ditas, as regras são claras, claríssimas.