Jornal Estado de Minas

FEMINISMO NEGRO

Carta a Lélia de Almeida Gonzalez

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Ei Lélia, tudo bem? Ou será que devo tratá-la como Dona Lélia? Sinceramente fico na dúvida, porque você nasceu em 1935, não é mesmo? E minha avó nasceu, um ano antes, em 34. Como nunca chamei minha avó de dona vó, eu vou me referir a você como, você mesmo, mas com todo respeito e carinho viu? 

Estranho eu me senti tão íntima de alguém que mesmo sendo minha conterrânea não tive a oportunidade de conhecer, conversar, olhar nos olhos e tal. Talvez essa intimidade venha do que sinto todas as vezes que leio seus textos que parecem conversar comigo, que me respondem dúvidas que eu ainda nem sabia que tinha. Vira e mexe eu penso em você e ontem em especial pensei um pouquinho mais, afinal nesse dia primeiro de fevereiro de 2023 completou 88 anos do seu nascimento.







Eu acho que você já sabe, mas não mudou muita coisa desde que você se foi. A tríplice discriminação da mulher negra continua nos violentando por aqui, mas o nome se popularizou como interseccionalidade, os racistas por omissão continuam atuantes, como nunca, dentro e fora dos partidos políticos. A Assembleia Legislativa do nosso estado por exemplo foi ter deputadas negras somente agora em 2018, ainda sim apenas três, em um total de 77 parlamentares.

Ontem tomaram posse aqui no estado quatro mulheres negras e nenhum homem negro como parlamentar. Não preciso nem contar os dados resultante do processo do genocídio do nosso povo, até porque sei que a cada vinte três minutos você encontra com um jovem negro diferente recém chegado aí, mas não só jovens, lamentavelmente são tantos como o menino Miguel e a Agatha que não conseguem chegar sequer à adolescência.


Mas, ainda sim posso afirmar que suas lutas renderam resultados significativos para nós. Os movimentos negros tanto pressionaram que o ensino da história dos negros e da África virou lei e aos poucos e com muita dificuldade está sendo implementado nas escolas. Já há algum tempo uma política governamental de promoção da igualdade racial reserva vagas para alunos negros foi implementada também e consequentemente aumentou o número de pretinhos e pretinhas nas universidades. 





Sua sacada em demarcar as peculiaridades  do nosso espaço enquanto mulheres negras na sociedade vem nos proporcionando melhores condições para reivindicar e obter êxito na conquista de direitos básicos. Nem preciso comentar da sua ginga em desenvolver conceitos que são fundamentais como são o "pretoguês" e a "amefricanidade" que vem nos dando embasamento teórico para abordar dentro e fora das academias o nosso saber questionando cotidianamente as epistemologias eurocêntricas e essencialistas impostas como obrigatórias pela branquitude acadêmica.

A branquitude ainda continua com o péssimo hábito de se referir a nós negras, como pretas raivosas, emocionadas quando vamos nos expressar de forma não resignada sobre as opressões que nos afligem e eu sempre respondo com aquela sua frase "a emoção também é episteme". E quando falam que sou radical, eu respondo rapidamente que radical é o racismo.

Mas deixa eu mudar de assunto e fazer uma fofoca que tenho certeza que você vai rir muito. Sabe aquela sua amiga, a Angela Davis? Então, ela esteve aqui no Brasil em 2019 e diante de uma platéia com milhares de pessoas soltou na lata exatamente assim: "Eu me sinto estranha quando sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. E por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo". Menina, foi um alvoroço de pessoas que não conheciam sua obra procurando nas livrarias seus livros e para vergonha geral da nação nenhuma editora comercial com um potencial de grande circulação tinha se quer uma obra sua publicada.





Quem manteve sua obra e seus textos organizando circulando foi um coletivo Pan Africanista lá de São Paulo. Não demorou muito uma das maiores editoras do país publicou os mesmos textos que constavam na publicação do coletivo em uma obra chamada "Por um feminismo afro latino americano" a capa ficou linda viu. Agora mais recente publicaram também o "Lugar de Negro" aquele que você escreveu com o Carlos Hasenbalg. Seus textos estão disponíveis em quase todas as livrarias desse país, e não só os seus, publicaram também os textos da Beatriz Nascimento, da Neuza Santos Souza, traduziram as obras da Angela Davis, da bell hooks e está pra sair o livro que é resultado do doutorado da Sueli Carneiro.

Pois é mulher, sua história de ativista, filósofa, antropóloga e intelectual reverbera por aqui mesmo depois de tanto tempo que você se despediu da gente. Suas pesquisas sobre a situação das mulheres negras no mercado de trabalho, a forma como você apontou nossas potências nos dá força para persistir na luta por uma sociedade que não nos violente com o machismo e o racismo. Assim como eu muitas mulheres negras da minha geração vem se tornando intelectuais orgânicas e fazendo bonito nas universidades graça a sua atuação tão assertiva no feminismo, na fundação do Movimento Negro Unificado e também no Pan Africanismo. 

Manda um abraço carinhoso para Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, Marielle Franco e para a Cláudia da Silva Ferreira. Caso encontre com mamãe e vovó por aí manda um beijo por gentileza, e diga que por aqui sigo honrando as minhas mais velhas.
 
Beijo grande e até mais!

Deixa eu assinar direitinho essa carta porque aprendi com você que nós negros e negras temos que ter nome e sobrenome se não os brancos arranjam um apelido ao gosto deles.

Então, assinado sua não tão velha, mas também não tão jovem, irmã de alegrias e lutas: Etiene Pereira Martins.