Jornal Estado de Minas

ECONOMÊS EM BOM PORTUGUÊS

A requintada autocracia é o maior risco à democracia

Certa vez li que “a pessoa interiormente pode ser mais forte que seu destino exterior”. Essa exterioridade pode carregar requintes de construção e manipulação imperceptíveis aos olhares menos atentos. Refiro-me, especificamente, ao crescimento dos regimes autocráticos e à fragilização da democracia para 70% da população mundial, nos últimos dez anos. O Brasil encontra-se entre os países que mais regrediram democraticamente e que, para piorar, aumentaram os níveis de polarização tóxica. 



O Brasil encontra-se, embora por critérios distintos, seguindo caminho similar à Russia no sentido autocrático, e os acontecimentos trágicos de “violência eleitoral”, nos últimos dias, sugerem que o pior ainda está por vir. O que esperar de um país armado e toxicamente polarizado em um ano de eleições cujas instituições democráticas estão sendo minadas?

Níveis elevados de polarização tornaram-se armas, de fogo ou não, nas mãos dos cidadãos. Criou-se, com requintes de manipulação e orquestrados movimentos mundiais de estratégias de disseminação da inverdade e da repressão da liberdade de expressão, a intolerância à diversidade e à pluralidade. Os exemplos recentes são assustadores e indicam que o caminho para as sociedades viverem com mais fraternidade e solidariedade está muito obscuro, atualmente. 


Em ano ainda mais tenso para eleição presidencial, no Brasil, divulgar o trabalho do Instituto V-Dem torna-se contribuição cívica em prol da sobrevivência democrática. O Instituto V-Dem é responsável pela construção e cálculo do Índice de Variedades da Democracia (IVD) que, por sua vez, tem como objetivo avaliar o andamento dos processos democráticos e autocráticos. 

Contando com a colaboração de 3.700 especialistas, o indicador mundial IVD disponibiliza um banco de dados com mais de 450 indicadores, desde o ano de 1789 até 2021, sobre 179 países avaliados – 93% dos países do mundo. A última publicação do IVD ocorreu às vésperas do início do ataque da Rússia à Ucrânia, e mesmo com cálculos consolidados até 2021, o IVD era capaz de evidenciar a deterioração da democracia russa, nos últimos vinte anos. 



O Relatório da Democracia 2022, produzido pelo Instituto V-Dem e intitulado “Autocracia mudando a natureza?”, traz sinais alarmantes de como a democracia vem se fragilizando em contraposição à construção dos novos fundamentos da autocracia, caracterizados pela (i) crescente polarização e desinformação por parte dos governos, como estratégia de demonização de seus oponentes políticos e (ii) informações inverídicas de diversas fontes. 

Na esteira desse crescente contexto autocrático, em 2021, o mundo vivenciou cinco golpes de Estado e, em início de 2022, deparou-se com o ataque russo à Ucrânia - guerra provocada pelo autocrático Putin. O resultado geral do IVD, em 2021, é alarmante: o nível da democracia experimentada pelo cidadão médio global caiu para patamares de 1989. 

Em outras palavras, o mundo erradicou 32 anos de avanços democráticos e a autocracia passou a prevalecer sobre 70% da população mundial. O número de democracias liberais caiu para patamares de 26 anos atrás – 34 países somente; de autocracias fechadas subiu de 20 para 30 países, sendo que só em 2021 foram 5 golpes de Estado (Chade, Guiné, Mali, Myanmar e Afeganistão).



Do ponto de vista da garantia da preservação das instituições e estruturas governamentais democráticas, o IVD evidenciou que, entre 2011 e 2021: (i) a autocracia eleitoral permaneceu como o tipo de regime mais comum – encontrado em 60 dos 179 países avaliados; (ii) o número de países que sofreu com notória deterioração na liberdade de expressão saltou de 5 para 35; (iii) houve substantiva piora dos aspectos deliberativos, culminando no agravamento da polarização tóxica que se expandiu de 5 para 32 países e com níveis de toxidade elevada em 40 países; e (iv) os órgãos de controle eleitoral foram minados pelos próprios líderes políticos. 
 
No Relatório do IVD 2022, lamentavelmente, o Brasil caiu nos cinco componentes do índice e surgiu como caso de destaque na dimensão polarização. Evidenciada a partir de 2013 e alcançando níveis recordes com a eleição do atual presidente, em 2018, a polarização brasileira está no grupo dos países que atingiram níveis tóxicos, segundo a escala do IVD. 

Desde que foi eleito, o atual Presidente não cansa de fazer demonstrações de clamor por intervenção militar, ameaças contínuas ao Supremo Tribunal Federal e questionamentos inverossímeis sobre o sistema eleitoral que o tem elegido há mais de 28 anos. Tudo isso sem contar no renascimento dos militares nos cargos executivos federais.



Brasil, Hungria, Polônia, Sérvia e Turquia lideram, em ordem decrescente, o crescimento da polarização seguida pelo decréscimo no índice de democracias liberais. A relação entre crescimento da polarização para níveis tóxicos e desmonte da democracia é ilustrada em números pelo IVD: concomitante ao crescimento da polarização política e da sociedade e ao aumento do discurso de ódio por parte dos partidos políticos ocorre o decrescimento do índice da democracia liberal. 

O Brasil, entre os cinco mais polarizados da década, é o país onde essas relações aconteceram com maior evidência. A polarização tóxica captura o declínio da oposição legítima, do pluralismo, das medidas de contra-argumentação em aspectos deliberativos. A internet tornou-se ferramenta estratégica para manipulação de informações, disseminação de fake news, acirramento da violência e até mesmo da manipulação estatística. 

No Brasil, no último domingo, as marcas da violência política foram deixadas no chão de um salão de festas, no corpo de um líder petista e chegaram pelas mãos de um policial federal defensor do bolsonarismo. Como capturada pelo IVD, a polarização tóxica anda de mãos dadas com a intolerância e não suporta diversidade, pluralidade e liberdade de expressão. 



Em menos de duas semanas, o mundo presenciou o retrocesso da Suprema Corte americana a decisões garantidas em 1973 – direito ao aborto -; o assassinato do ex-premiê do Japão Abe Shinzo, em país cuja política desarmamentista é a mais rígida no mundo; e o misterioso caso da morte do oligarca russo Yuri Voronov –  somando-se cinco oligarcas e alguns familiares, nos últimos meses, na Rússia.
A paralisia da sociedade, seja por descrença nas suas representações legislativas e institucionais, seja pelo medo da repressão e da morte, forma a tempestade perfeita para a instauração dos regimes autocráticos. Nesse prevalente contexto, dificilmente, “a pessoa interiormente pode ser mais forte que seu destino exterior”.