Jornal Estado de Minas

ECONOMÊS EM BOM PORTUGUÊS

Esquecemos o refrão musical 'Criança não trabalha, criança dá trabalho'

O combate ao trabalho infantil é tema antigo e ainda presente na sociedade brasileira, que embora viva a flertar com as experiências econômicas exitosas dos países desenvolvidos, não consegue abrir mão das práticas sociais da época de sua colonização. Desde 2017 até abril de 2022, a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho resgatou, no Brasil, 8.946 crianças e adolescentes de situação de trabalho infantil por condições perigosas ou inadequação etária para o exercício da atividade. Minas Gerais respondeu por 8,4% do resgate total do período e, lamentavelmente, destacou-se pela liderança nos resultados acumulados desde o início da pandemia em diante. 





No último domingo, 12/6, celebrou-se o Dia Internacional do Combate ao Trabalho Infantil. O último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – intitulado “Trabalho infantil, estimativas globais 2020, tendências e o caminho a seguir” – traz dados ainda impressionantes para a atualidade. De 2000 a 2016, o mundo como um todo teve redução de quase 94 milhões de crianças e adolescentes em condições inadequadas de trabalho, ou trabalho perigoso – caracterizado como trabalho escravo, tráfico de drogas e exploração sexual. 

De 2016 para 2020, entretanto, aumentou em 8,4 milhões o número de crianças em trabalho infantil, sendo 6,5 milhões alocados em trabalhos perigosos. No total, o relatório estimava 160 milhões de crianças em trabalho infantil, no mundo, em 2020, dos quais 49% em trabalhos perigosos. O cenário projetado pela OIT, para o final de 2022, é de aumento desse montante em virtude, sobretudo, das condições de pobreza agravadas pela pandemia da Covid-19, caso os governos nada façam para coibir o avanço da degradação social. 

Os dados do relatório da OIT indicavam que a região da América Latina e Caribe apresentava elevado percentual de gastos com coberturas efetivas de políticas sociais como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), mas baixo direcionamento a políticas voltadas para crianças. O que o relatório não avaliava é como internamente, no Brasil, articulamos e direcionamos ineficientemente nossos recursos com políticas sociais. 





Exemplo recente de como a construção das políticas sociais são interrompidas e renovadas é o novo programa Trabalho Sustentável, criado pelo Ministério do Trabalho e Previdência. Nesta terça-feira, 14/06, a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), com participação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e mais dois ministérios, promove o webinário “Proteção social e a intersetorialidade das políticas públicas para a erradicação do Trabalho Infantil no Brasil”, no âmbito do recém-lançado programa. O objetivo é apresentar as políticas públicas, desenhadas pelo novo programa, que estão voltadas para o combate ao trabalho infantil.

Políticas de combate ao trabalho infantil, encabeçadas pelo Ministério do Trabalho e Previdência, precisam dialogar diretamente com políticas desenhadas pelo Ministério da Cidadania - como acontecia com o Bolsa Família por meio da exigência de benefícios condicionados à permanência das crianças na escola -, e pelo Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, sob pena de serem programas com boas intenções e maus retornos. 

Assim como no mundo, de 2016 em diante, o Brasil estagnou e estima-se que até mesmo tenha aumentado o número de crianças em trabalho infantil e trabalho perigoso. As políticas sociais educacionais foram omissas e irresponsáveis, em todas as esferas públicas, ao deixarem as crianças praticamente sem aula nos dois primeiros anos da pandemia. Não há nenhuma ação conjunta para recuperar o tempo perdido e garantir que essa geração não sofra ainda mais do ciclo (autoalimentado) da intergeracionalidade da pobreza. 





Há algum tempo apresentei, nesse espaço, resultados do estudo realizado pela Fundação Maria Cecília Souto Veiga que estimou os impactos da Covid-19 no aprendizado e bem-estar das crianças. O estudo indicava que as crianças em idade pré-escolar, em 2020, residentes no município do Rio de Janeiro, aprenderam cerca de 66% em linguagem e 64% em matemática comparativamente àquelas de 2019. Estratificando por classe social, esses resultados tornaram-se ainda mais díspares: 49% para as classes mais baixas ante 75% para as mais altas. 

Há forte relação entre pobreza, baixa escolaridade, trabalho infantil e trabalho escravo; em sua maioria, pessoas resgatadas de trabalho análogo à escravidão começaram suas atividades laborais ainda na infância. Acontece, na mais tenra idade e até mesmo nos ambientes domésticos, a banalização da exploração e da expropriação das condições dignas de vida e assim dá-se continuidade à perpetuação da pobreza – como dito anteriormente, é o ciclo autoalimentado da pobreza. 

“Pureza”, filme nacional lançado no cinema, em maio de 2022, conta história real de uma mãe que sai em busca de seu filho nas fazendas do interior do norte/nordeste do Brasil e depara-se com trabalhadores vivendo em situações análogas à escravidão. Pureza enfrentou desafios que talvez somente uma mãe fosse capaz e lutou sem desistir pelo resgate do seu filho. 





Na mesma época da filmagem de Pureza, em 2019, OIT e Ministério Público do Trabalho lançaram, na plataforma Youtube, o documentário “Precisão”. A origem do nome vem da exposição de motivos que muitos de seus protagonistas, ex-trabalhadores resgatados de situação análoga à escravidão, alegavam para se submeterem a situações indignas de vida, resumidos em uma única palavra. Enquanto Precisão é um retrato de injustiças diuturnamente combatidas por instituições e pessoas que defendem a vida humana, Pureza é inspiração por resgate e luta pela dignidade humana. 

Pureza e Precisão são exemplos documentados de que a busca pela dignidade para todos só é possível mediante os enfrentamentos e desmontes das graves e crônicas condições sociais daqueles que vivem em situações de extrema pobreza. Refiro-me, hoje, a cerca de 44 milhões de brasileiros e brasileiras ou 55% das pessoas inscritas no CadÚnico e que vivem nessa condição, segundo dados disponíveis no site do Ministério da Cidadania relativos a abril de 2022. Refiro-me a 20% da população brasileira que agora dorme nas ruas, revira os lixos para comer comida estragada, ocupa os sinais de trânsito e não escapa mais aos olhos de nenhuma bolha social.