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A linha que cortou meu coração

Gabriel Feijão vai driblando o vento, fazendo piruetas coloridas no ar, sem linha de cerol ou chilena capazes de derrubar a esperança de um menino de 15 anos%u2019


postado em 16/02/2020 04:00


 
Ele veio sorrindo em minha direção enquanto eu observava aquele adolescente com pinta de jogador de futebol, entre tantos ídolos presentes na 57ª solenidade de entrega do Troféu Guará, promovido pela Rádio Itatiaia. Muito bem-vestido em um terno preto com gravata-borboleta azul, pensei: será um desses meninos da seleção de base de algum time?. Um R-15 com promessa de se tornar um craque como tantos que estavam ali no Buffet Catarina, onde era realizada a solenidade de entrega de troféus aos melhores do ano anterior? Sem parar de sorrir, ele pediu para tirar uma foto comigo. “Claro”, eu disse.
 
Depois da foto, perguntei o nome dele, que me disse se chamar Gabriel. O mesmo nome do meu filho, que estava ao meu lado na festa em homenagem ao avô. Como todo repórter, eu queria saber por que ele estava lá, se era um dos homenageados. A resposta foi cortante. Ele levantou a calça esquerda do terno e vi que era um amputado com uma prótese mecânica. “Sou Gabriel Feijão, que perdi a perna há seis meses por causa da linha chilena de empinar papagaio.” Silêncio ensurdecedor. O burburinho da festa se apagou para mim. Mas ele me apresentou a seus pais na mesa ao lado: Regina Alves Rosa do Nascimento e Amilton do Nascimento, ambos de 46 anos.
 
O casal também sorria, sem mágoas, sem revolta, com olhar doce, daquele que expressa afeto e cuidado. A mãe explicou que Gabriel Feijão havia sido convidado por Úrsula Nogueira, diretora de esportes da rádio, que sabia da vontade dele de ser jogador de futebol. Mas cujo sonho fora roubado por uma linha chilena criminosa. Roubado pelo jogo de ganhar pipas no céu. Aos 15 anos.
 
Não me contive. Enquanto Gabriel tirava fotos com os ídolos atleticanos – time da sua devoção – como Cazares, Marquinhos, sem se esquecer de posar junto com Reinaldo, o primeiro artilheiro do Clube Atlético Mineiro de todos os tempos, observei a coincidência: como meu pai, Guará, que dá nome ao troféu há 57 anos. Guará, o Guaracy Januzzi ou Perigo Louro, como era conhecido, por causa dos seus dribles e gols, teve a carreira repentinamente interrompida por causa de um acidente em campo, em 1939. Uma cabeçada fatal com Caieira, do time adversário Cruzeiro, na época Palestra Itália – e nunca mais foi o mesmo. Parou de jogar. “A fama teve inveja de Guará”, profetizou o conterrâneo de Ubá, Ary Barroso, na época.
 
A fama também teve inveja daquele menino de 15 anos que não conseguiu nem se profissionalizar, apesar de sempre ter se destacado como atacante no São Cristóvão, time lá de Betim, onde mora com os pais numa casa de três cômodos, onde ele respira futebol 24 horas por dia. Mas a fatalidade veio quando ele saía do treino com um amigo e viu uma linha chilena caída no chão. Ele estava em uma borracharia para trocar o pneu furado da bicicleta do amigo Fernando, quando uma motocicleta surgiu do nada. Ele ficou preocupado com os ocupantes da moto e correu para recolher a linha, que se enrolou na roda de um ônibus, esticou e atravessou, afiada, cortante como uma navalha, as pernas de Gabriel Feijão. Esse pedaço da história de Gabriel é conhecido do grande público. Ele perdeu uma das pernas.
 
Parênteses – Para falar de Regina, a mãe de Gabriel Feijão. Em 27 de julho de 2019, dia do acidente, ela estava se preparando para ir a um casamento quando ligaram para a casa dela avisando. Saiu correndo para o Hospital Regional de Betim para saber o que havia ocorrido. No trajeto, ela fez uma análise da vida. Casada há 22 anos com Amilton, segundo ela, um homem amoroso, um pai como poucos, comerciante, dono do Rei do Caldo, em Betim. Com cinco filhos – quatro homens e uma menina –, Regina se casou grávida do primeiro filho, Mateus. Ela estava com 23 anos quando o primogênito nasceu com síndrome de Down. O mundo desabou para Regina. Teve depressão pós-parto, achou que não merecia, sentiu que a genética tinha dado uma rasteira nela. No primeiro momento, Regina se sentiu angustiada, triste, derrotada. “Fui egoísta, mas a cada vitória de Mateus ia sentindo um amor sem medidas, incondicional.” Amilton, o pai, também sofreu, desabou, pois é muito sensível, emocional, mas nunca perdeu o foco, “não deixou a peteca cair. Tem garra, é determinado. Tanto que está construindo, com dificuldade, uma casa maior. Hoje, eles moram na casa da avó Josina, mãe de Amilton, de 91 anos, que é parte da família.
 
Quando Mateus estava com quase 3 anos, Regina engravidou de Amilton. Teve uma gravidez de risco, com pré-eclâmpsia, mas entendeu que Deus sempre tem um propósito. Amilton Júnior nasceu saudável e tranquilo. Depois veio Rafael, em seguida Gabriel, com diferença de um ano entre os dois. Por último, Maria Luiza, porque o casal era doido com uma menina. Antes do nascimento, ela e o marido fizeram um pacto. Se fosse menino, ela ligaria as trompas porque não queria mais filhos. Se fosse menina, Amilton optaria pela vasectomia. E não é que nasceu Maria Luiza e aquele pai cumpriu o combinado? Fecho parênteses.

Toda mãe – e sou uma delas – sabe que ter e educar filho não é missão fácil. Não tem receita. Filho, não canso de repetir, não vem com manual de instrução e sempre está sujeito a nuvens e trovoadas, a tempestades que derrubam conceitos e preconceitos, desejos vãos e sonhos tolos. Ter filho é um presente, mas também uma aprendizagem constante, com acidentes de percurso. Mas o que me encantou nos pais de Gabriel Feijão é que, apesar de tudo, eles estão juntos, inteiros, cuidando, protegendo e amando os cinco filhos. Amilton é um homem que não fugiu da paternidade responsável. Sei de homens que se o filho tem algum problema culpam a mãe e caem fora. Regina e Amilton não. Ela, por exemplo, me disse uma frase que vai ficar guardada na minha alma: “Só pais especiais têm filhos especiais”. Não pude conversar muito com Gabriel, pois ele se sentia honrado, feliz demais com o convite para o Guará, entre seus ídolos e sonho de ser jogador de futebol.
 
Vocês acham que ele desistiu da carreira? Não, um dia depois da festa no Buffet Catharina, viajou para Mogi das Cruzes, em São Paulo, onde foi conhecer Rogerinho, o Rogério Rodrigues de Almeida, que fundou e coordena o Futebol de Amputados Corinthians. A convite de Rogerinho, Gabriel ganhou presentes. Entre eles, uma muleta especial para jogar futebol, vídeos e camisas. Hoje, Rogerinho é a inspiração de Gabriel, que vai correr atrás dos seus sonhos até disputar as Copas do Brasil e do Mundo de Amputados.
 
Gabriel Feijão alçou voo de novo. Vai driblando o vento, fazendo piruetas coloridas no ar, sem linha de cerol ou chilena capazes de derrubar a esperança de um menino de 15 anos. Com a muleta de amputados, Gabriel pretende ser um Ronaldo Cristiano ou um Lionel Messi, seus maiores ídolos. Ele vai dando linha, agora com Rogerinho, que nasceu sem uma das pernas, mas nunca desistiu de jogar a bola para o gol. Gabriel Feijão driblou a fatalidade e vai fazer tremer a rede adversária!

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