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Estado de Minas CORAçãO DE MãE

Medo da noite

"Nem no Santuário de São João Batista ela vai mais à noite para a missa das 19h30. Tem medo de sair e não poder voltar"


postado em 09/06/2019 07:00

(foto: Pixabay)
(foto: Pixabay)

Desde fevereiro, quando as sirenes dispararam pela primeira vez, Beatriz Palhares Ferreira, de 71 anos, mudou o tom e a suavidade de suas mensagens. Antes desse dia, eram fotos das 90 espécies de orquídeas beirando a casa recentemente reformada. Daqui, as primas ficavam orgulhosas com tanto esmero. Até fevereiro, Beatriz mantinha a sua rotina de compras, aulas de teclado, de pilates duas vezes por semana e as caminhadas com o marido, Marco Aurélio Ferreira, de 80 anos.

Beatriz sempre foi uma bela e serena mulher, uma dona de casa e tanto, que faz comidas de dar água na boca, borda, confecciona panos de prato como a mãe, Juracy Palhares. Casada há 52 anos, enviou fotos das bodas de ouro, dos seis filhos, três dos quais ainda moram na mesma cidade. Comemorou o nascimento dos cinco netos e a alegria da espera do bisneto Samuel. Até fevereiro deste ano, Beatriz poderia dizer que era uma pessoa tranquila, com uma vida suave como o correr de um rio, que tem cumprido sua missão de esposa, mãe, avó e dona de casa. Ela se cuida muito, canta e toca piano, faz parte do coral Querubim. É uma ativista do envelhecimento ativo, planta, colhe e até 8 de fevereiro não se deixava vencer por pouco não.

Mas as sirenes dispararam e perturbaram a sua paz. O medo entrou, sem pedir licença, na casa charmosa, onde mora há 48 anos, na Rua Ministro Clóvis Salgado, em Barão de Cocais, a 90 quilômetros de BH. Beatriz não dorme mais, tem medo. A última mensagem de Beatriz não mostrava flores no quintal nem comemorações de datas especiais. Dizia: “Mais uma noite chegando e com ela nossa insegurança a respeito do que possa ocorrer com os moradores de Barão de Cocais. À noite, prima, tudo é pior. O Talude a cair, a barragem que pode se romper. Só mesmo fé, esperança e força em Deus nos acalmam. Que são João Batista possa interceder por nós”.

Nem no Santuário de São João Batista ela vai mais à noite para a missa das 19h30. Tem medo de sair e não poder voltar. Mas como mulher forte e guerreira, ela resiste bravamente para não ver a família se desesperar. Ela se mantém firme. Já colocou roupas de cama, documentos importantes, fotos, registros em cima dos armários. O piano nem tem jeito de levantar, mas fotografou tudo. Como sempre, reza antes de dormir e ao acordar, mas agora com uma angústia que nunca sentiu. Um sono entrecortado, de olhos abertos e coração sobressaltado com o possível rompimento da barragem de Congo Soco. A mineradora Vale do Rio Doce tirou a paz dos moradores de Barão de Cocais. Colocou o medo no lugar. Quem deu permissão para substituir paz por pânico?

Beatriz se preocupa com tudo, mesmo que não expresse, até com Chacal, o cão que é parte da família há anos. A lama nem chegou e Beatriz e Marco Aurélio já tiveram prejuízos. As casas que construíram para alugar, na Vila São Geraldo, ladeadas pelo Rio São João, foram todas desocupadas, pois estão na rota da lama. Perderam todos os inquilinos. Sair de lá para onde? São 48 anos de história de vida e construção da família, de um patrimônio que exigiu luta, esforço, economia e sacrifícios.

O medo quebrou a rotina de Beatriz, desorganizou a vida dela, bagunçou os sonhos e trouxe pesadelos que nunca teve. O banco da cidade virou container. O comércio desceu as portas. A vida virou de pernas para o ar. Antes, Beatriz ia tranquilamente visitar a filha Ana Paula nos Estados Unidos e a neta Gabriela que vai lhe dar um bisneto. Deixava a casa em Barão de Cocais sem medo, na certeza de que, ao voltar, tudo estaria como deixou. E agora, José? Já sentenciou o poeta Carlos Drummond de Andrade, em inúmeros textos denunciando as mineradoras que se apossaram de Minas, em nome de um lucro incontável. Em O maior trem do mundo, ele adverte: “Leva minha terra para a Alemanha. Leva minha terra para o Canadá. Leva minha terra para o Japão. O maior trem do mundo, puxado por cinco locomotivas a óleo diesel, engatadas, geminadas, desembestadas, leva meu tempo, minha infância, minha vida. Triturada em 163 vagões de minério e destruição. O maior trem do mundo transporta a coisa mínima do mundo. Meu coração itabirano. Lá vai o maior trem do mundo. Vai serpenteando, vai sumindo e um dia, eu sei não voltará. Pois nem terra nem coração existem mais”.

Ninguém ouviu o poeta, mesmo depois que a barragem do Fundão - operada pelo consórcio britânico BHP Billinton, Samarco e Vale - se rompeu e os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, desapareceram do mapa, sob o tsunami de lama.

O poeta não viu quando a Mina de Feijão, em Brumadinho, da Vale do Rio Doce, se rompeu. Os Rios Doce e Paraopeba estão mortos, amargam o descaso para com a natureza e o ser humano. Minas hoje tem a cara feia do medo!

* Déa Januzzi assina esta oluna quinzenalmente

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