Jornal Estado de Minas

A Delta e a AIDS

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Durante essa semana comemoramos o Dia do Amigo. Recebi dezenas de massagens de colegas e amigos celebrando esse dia, que, até há poucos anos, eu não sabia que existia.

Na sequência das mensagens, em sua maioria, muito bonitas, vinha por vezes uma pergunta pandêmica:

- A Delta vem mesmo?!

A resposta era simples e direta:

- Sim, virá e deverá chegar rápido em algumas semanas, assim como ela fez na Índia, Inglaterra, etc.



Na sequência, vinha mais uma pergunta:

- O que te dá tanta certeza?!

A resposta:

- A AIDS!

Na semana anterior, contei sobre minha passagem pela Universidade de Freiburg, onde tive a sorte de conhecer o sistema de atendimento de urgência da região, no qual me inspirei para desenhar um sistema semelhante para a Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Foi também em Freiburg que tive a oportunidade de ver os primeiros casos de pacientes internados com AIDS e discutir com os colegas sobre o crescimento abrupto do número de casos na Alemanha e, particularmente, naquela região.

Onde sobra preconceito e estigma, geralmente prevalece a ignorância e o medo. Os pacientes eram tratados em unidades isoladas, onde os profissionais que os assistiam usavam paramentação semelhante às que temos visto atualmente para lidar com os pacientes com COVID-19, em nossas UTIs.



Tecnicamente correto para aquele momento da epidemia, quando não dispunhamos de tratamentos efetivos contra o vírus e os pacientes faleciam de infecções oportunistas, muitas delas transmissíveis por via aérea, como a tuberculose.

Entretanto, o que chamava atenção dos colegas era a rapidez com que novos casos eram diagnosticados e chegavam à unidade de isolamento, onde aumentava dia a dia a ocupação do número de leitos.

Retornando ao meu trabalho na Superintendência Hospitalar da FHEMIG, fui apresentar as novidades que eu havia visto e vivenciado. Relatei sobre o sistema de atendimento de urgência e tive total apoio para seguir em frente e estudar um projeto semelhante a ser implantado em nosso meio.

Porém, quando falei sobre a AIDS e a minha preocupação com a epidemia que certamente enfrentaríamos, o então superintendente fez um comentário que eu nunca esqueci:

- Starling, você está muito europeizado! Essa doença não chegará por aqui. Isso é coisa de país rico. Nosso problema aqui é doença de chagas, tuberculose, esquistossomose, etc.



Argumentei que se trava de uma doença sexualmente transmissível, que, assim como a gonorreia, tinha tudo para se espalhar rapidamente pelo mundo. Além disso, por ser uma doença carregada de estigma e preconceito, certamente pressionaria o setor público e deveríamos nos preparar rapidamente para atender os pacientes que, em breve, começariam a chegar em nossos hospitais. Fui voto vencido e ainda taxado de alarmista e europeizado.

Interessante! No princípio da atual epidemia, quando fizemos as projeções iniciais do número de casos que teríamos se nada fizéssemos, recebi rótulos semelhantes de quem tem pouco conhecimento epidemiológico e sensibilidade nenhuma.

Felizmente, na atual epidemia, a informação e as imagens da tragédia andam mais rápido que o vírus, dando aos gestores competentes e responsáveis a possibilidade de agir rápido e proteger aqueles que os elegeram.



Por outro lado, negacionistas têm a possibilidade de ampliar o espectro de suas ideias através de redes sociais, causando um estrago, às vezes, maior que o do próprio vírus. Retomando a epidemia da AIDS, não passou nem um mês após eu anunciar a minha preocupação, quando, numa sexta-feira à tarde, me chamaram com urgência no gabinete da presidência da FHEMIG.

Curioso, mas as emergências têm uma predileção pelos finais de tarde de sextas-feiras. Se programarmos algum final de semana especial, então, é fatal. Um paciente com suspeita de AIDS havia sido referenciado por um deputado da região de Uberaba para a Secretaria de Saúde. Instalou-se o pânico geral. O secretario de saúde havia se trancado no gabinete, as secretárias debandaram e o paciente havia sido encaminhado à Superintendência Geral da FHEMIG - e o caos mudou de local.

O "europeizado" teve que apagar o incêndio previsto, levando o paciente para uma unidade recém construída e ainda não inaugurada, destinada a grandes queimados no Hospital João XXIII. Claro, sob protestos de colegas, funcionários e gestores, os quais foram "pegos de surpresa" com essa decisão.



Em pouco tempo, a unidade foi sendo ocupada, não por pacientes queimados, e sim por pacientes com AIDS. Não foi fácil conseguir equipe para atender esses primeiros pacientes, mas a abnegação e o profissionalismo sempre falam mais alto no coração da maioria dos que optam pela área de saúde.

No período noturno, nos reuníamos para estudar e discutir artigos científicos que eram publicados em revistas internacionais. Lembro que, nessa época, internet e telefone celular eram apenas ficção científica. Literatura científica era na biblioteca.

Três colegas foram fundamentais para que a unidade desse os seus primeiros passos: Dr. Luiz Antônio Loures, Dr. Carlos Alberto Becker e o então acadêmico de medicina, Marco Antônio Ávila Vitória. Conscientes do papel histórico que estavam tendo, passaram, posteriormente, para a coordenação municipal, estadual e nacional de DSTs e AIDS.



Tendo na bagagem a experiência da assistência e da gestão de programa em todos esses níveis de complexidade, Dr. Loures e Dr. Marco Vitória, foram para a Organização Mundial de Saúde tendo um papel fundamental no controle da epidemia no mundo inteiro. O meu papel na época, como supervisor hospitalar, foi de dar suporte ao trabalho da equipe médica.

Algum tempo depois assumi interinamente a diretoria do Hospital Eduardo de Menezes, até então destinado ao atendimento de pacientes com tuberculose. Com a ajuda de três arquitetos (Glaucia Amorin, Andrea Gandra e Sídney), elaboramos o plano diretor do hospital, contemplando a área de atendimento de pacientes com AIDS. Assim nascia um dos principais hospitais para atendimento a doenças infectocontagiosas do país.

Neste momento, você deve estar se perguntando:

- Mas, e o que isto tem haver com a variante Delta?

Simples, a AIDS é uma doença com R0 (índice de transmissão) que varia de 2 a 5. Ou seja, uma pessoa infectada transmite para a 2 a 5 outras pessoas. Uma doença com este índice de transmissão, inevitavelmente, se dispersaria pelo mundo rapidamente, o que de fato ocorreu. A variante Delta do coronavírus, tem um R0 de 5 a 8, o que significa, que 1 pessoa transmite para 5 a 8 outras.



O leitor já deve ter concluído, nesse momento, que essa variante se dispersará inevitavelmente por todo o país numa velocidade maior que a variante que iniciou essa pandemia.

Graças às vacinas, poderemos ter um número menor de internações e mortes por essa nova variante. Portanto, não é hora de baixarmos a guarda. Manter as medidas de distanciamento social, uso de máscaras, higiene das mãos e evitar aglomerações é absolutamente essencial no atual momento. Perder esse jogo aos 45 minutos do segundo tempo, não vale.

Portanto, caros amigos que me mandaram mensagens, a Delta implacavelmente chegará, assim como as outras variantes chegaram. Na natureza, tudo evolui, exceto a cabeça dura do Messias.

audima