Jornal Estado de Minas

Padecendo

Aquilo que você não quer ver

Conteúdo para Assinantes

Continue lendo o conteúdo para assinantes do Estado de Minas Digital no seu computador e smartphone.

Estado de Minas Digital

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Experimente 15 dias grátis

bebel soares 

A marquise abriga uma família. Pai, mãe, três crianças morando ali na calçada. Pais desempregados que não conseguiram continuar pagando aluguel. Foram se abrigar embaixo a marquise.




A marquise do prédio comercial que está vazio, fechado há quase uma década. Uma família sem teto. Um prédio inteiro desocupado. Um prédio comercial, cheio de salas e banheiros. Sem uso. Abandonado. Se deteriorando. A família na calçada suja. As crianças brincando, os pais pedindo ajuda.
 
Do outro lado da rua mães com crianças. Mães desempregadas vivendo de auxilio emergencial e indo pra rua com os filhos pra vender pano de prato, pra pedir, para tentar qualquer coisa para conseguir complementar a renda. Quem quer empregar uma mãe com filhos pequenos? Com o auxílio elas só conseguem comprar comida, não sobra pra comprar gás, pagar pela energia elétrica, pela água ou pelo aluguel.
 
Thais, tem 6 filhos, os maiores ficam na creche, a bebê fica com ela e tem que ir pra rua junto com a mãe. Thais amamenta a menina de 8 meses sentada na calçada, o marido fez vasectomia recentemente, levou tempo para conseguir. Ele também está desempregado, tem tentado vaga como varredor de rua, mas nem isso conseguiu.




 
Rebeca vai para uma região mais rica e mais movimentada da cidade, quando tem dinheiro para a passagem, para pedir doações, as duas filhas mais novas vão com ela, o marido vende Balas no semáforo porque também está desempregado, eles também recebem o auxílio.
 
A última, Poliana, tem o pix anotado em pedacinhos de papel e entrega a quem pára para falar com ela. A maioria das pessoas passa direto, como se ela não estivesse ali, sentada na calçada suja com um bebê no colo. Ela recebe o auxílio, que paga o alimento, mas não paga o gás para cozinhar.
Quem dá emprego para uma mãe com filhos pequenos?
 
Como eu sei dessas histórias? Eu paro para conversar com as pessoas na rua. Elas me contam.
O Auxílio Brasil não está previsto no orçamento de 2023. Lembrando que houve pressão na câmara para subir o valor que inicialmente seria de 200 reais. Quanto tempo dura uma compra de 200 reais na sua casa? Quanto nós gastamos só de supermercado por mês? Qual o valor mínimo uma família precisa para viver com dignidade?
 
A cada 100 mil habitantes de Belo Horizonte, 340 estão em situação de rua. A proporção é a maior entre as capitais do Sudeste e, no ranking nacional, a capital mineira só perde para Boa Vista (RR).




É isso que queremos para as crianças desse país?
 
Não é sobre levar essas famílias para irem morar dentro da sua casa. É sobre pessoas sem teto, famílias sem teto, crianças sem teto. É sobre a fome. É sobre gente que pode se dar ao luxo de ter um prédio inteiro fechado enquanto o país volta para o mapa da fome.
 
Não sobre a Venezuela ou a Argentina, é sobre brasileiros comendo ossos, revirando lixo atrás de restos de comida. É sobre desigualdade. Não é sobre o teto onde você vive. É sobre gente que sobrevive sem teto nenhum.
 
É sobre meninas pobres que são tratadas como prostitutas quando tomam um banho e se arrumam. É sobre  "pintar um clima" entre um idoso e uma adolescente e pessoas acharem isso natural.
 
É sobre infâncias roubadas. Sobre a falta de acesso ao básico do básico. É sobre o direito da criança e do adolescente previsto no ECA (Estatuto da criança e do adolescente) que, no artigo 4º, diz que é um dever de todos - família da comunidade, sociedade e poder público - assegurar a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. Ou seja, os direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização e à proteção ao trabalho, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar (seja família natural ou substituta) e comunitária.
 
Não é sobre seu umbigo, é sobre aquilo que você não quer ver.