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Estado de Minas Padecendo

Aborto legal e entrega voluntária para adoção

O que a gente aprendia na escola era: sexo é assim, gravidez se previne assim. Se engravidar, você vai ter que ter o bebê


03/07/2022 04:00 - atualizado 03/07/2022 09:00

Ilustração sobre aborto
(foto: ARTE/EM)

Muito pouco eu sabia da vida quando tive meu primeiro contato com o tema “aborto”. Foi numa aula de Ensino Religioso na escola. Eu estudava em um colégio católico tradicional de Belo Horizonte.

Quando tínhamos 11 anos, tivemos aulas e palestras sobre sexo, sim, a relação sexual, os órgãos sexuais masculinos e femininos, a reprodução, os métodos contraceptivos e as doenças que podíamos pegar fazendo sexo. 

As aulas continuaram nos anos seguintes e não me lembro que idade eu tinha, talvez 13, quando, na mesma aula de Ensino Religioso, fomos a uma sala cheia de almofadas, nos sentamos, apagaram as luzes e começaram a projetar aquelas imagens de aborto na tela. Mostravam aqueles fetos minúsculos, com mãozinhas e pezinhos formados, mostravam alguns métodos abortivos. Foi traumatizante. 

Claro, nenhum adolescente saía daquela sala sem achar o aborto algo abominável.

O que a gente aprendia na escola era: sexo é assim, gravidez se previne assim, mas se você fizer sexo você vai sempre correr o risco de engravidar ou de pegar uma doença. Se engravidar, você vai ter que ter o bebê. Para completar os ensinamentos, a vida ensinava que, se uma menina engravidasse, ela teria que assumir. E que não contasse com o pai da criança para dividir as responsabilidades - engravida quem quer.

Já com 17 ou 18 anos, e começando a conhecer a doutrina espírita, caiu nas minhas mãos um livro chamado “Nós Abortamos”, muitas histórias de terror sobre almas que não puderam reencarnar e mulheres culpadas por abortarem até mesmo quando a gravidez era fruto de estupro.

Aquilo só consolidou tudo o que eu já havia aprendido no catolicismo. Eu jamais faria um aborto. E nunca fiz mesmo, engravidei uma vez, conforme planejei e meu filho único já tem 13 anos. Tive acesso à informação, sempre usei pílula anticoncepcional e camisinha. Mas essa é a minha história e eu aprendi que não posso julgar as pessoas com base apenas no que eu vivi.

Foi só depois que eu me tornei mãe que eu tive a capacidade de entender a decisão de não ter um bebê a qualquer preço. Sobre o peso que deve ser gestar o fruto de um estupro. Sobre como deve ser inconcebível cuidar e criar de um ser que foi fruto de uma violência.

É possível relativizar o estupro de uma criança de 10 anos porque o estuprador é um adolescente de 13 anos? Existe consentimento nesse caso?

Uma mãe fez um depoimento no nosso grupo: “Eu já estive grávida decorrente de um abuso. Foi horrível, pior sentimento que já tive na vida.Sentia nojo de mim, do meu corpo. Queria esquecer tudo que passei. Mesmo sabendo que eu poderia fazer um aborto legal, seguro, eu procurei meios duvidosos para “resolver” meu problema. 

Não queria me expor, não queria ter que explicar nada para ninguém, só queria tentar esquecer aquele pesadelo. Corri riscos porque não queria sofrer com julgamentos. E quantas mulheres também passam por isso? Precisam correr riscos, ter sequelas, ou até morrer para conseguir algo que a lei lhes garante? Felizmente no meu caso deu certo. Quando vejo alguém defendendo que a vítima siga com uma gestação vinda de violência, sinto pena.Só quem passa por isso sabe como é difícil. Eu, adulta, bem resolvida, sofri. Imaginem uma criança? É inadmissível isso! Sonho com um mundo com mais acolhimento e menos julgamento”.

Esse depoimento também vale para o caso de Klara Castanho, que deu o bebê para adoção. Se a mulher engravida depois de um estupro, ela tem direito ao aborto legal, mas ela sabe que o julgamento virá até dentro do sistema que devia acolhê-la. Dizem que ela não deveria abortar, que deveria ter o bebê e dar para adoção. E quando assim o faz, também é julgada, porque metade do DNA é dela, porque amor de mãe deve superar tudo.

Depois que me tornei mãe, conheci muitas mães que foram abandonadas pelos pais de seus filhos quando estes descobriram que a criança tinha uma deficiência. Segundo dados divulgados pelo Instituto Baresi, em 2012, no Brasil, 78% dos pais abandonaram seus filhos menores de 5 anos que tinham doenças raras e deficiências. 

As mães ficam com toda a responsabilidade afetiva e financeira. Não por acaso, as notícias de mães que morreram sozinhas com seus filhos em casa e seus corpos foram encontrados dias depois não são raras.

Nunca vi um pró-vida lutando pela vida dessas mães.Ninguém se escandaliza com o abandono paterno. Ninguém se escandaliza com os 5,5 milhões de brasileiros que sequer têm o nome do genitor na certidão de nascimento. Ninguém se preocupa com a quantidade de mulheres que os homens engravidam sem se preocupar com uma gravidez indesejada. 

A responsabilidade é sempre da mulher. A culpa também. A preocupação não é com a criança, a preocupação não é com a vida, a preocupação é com a liberdade das mulheres.

Aborto em caso de estupro é permitido por lei desde 1940. Nenhuma mulher ou criança é obrigada a levar uma gestação fruto de uma violência adiante. Entregar o bebê para a adoção também é um direito previsto em lei. A entrega voluntária para adoção só pode ser feita por meio do Poder Judiciário.
Todo aborto, legal ou não, tem consequências físicas e/ ou psicológicas para a mulher.

Engravidar após um estupro e entregar o bebê para a adoção também deve ser dilacerante. Se você passar por isso, você escolhe o que fazer. Se não passar, agradeça e não julgue quem estiver passando. Esse é um lugar que ninguém gostaria de estar.

É muito difícil defender os direitos das mulheres. As próprias mulheres nos atacam quando defendemos esses direitos. Nessa sociedade patriarcal, nenhuma escolha é certa para a mulher, porque certo mesmo é ser homem. 

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