Jornal Estado de Minas

PADECENDO

Cultura do estupro: a vítima não é ouvida


Eu tinha 12 anos, era um fiapo de gente, bem magrinha, corpo bem infantil, cabelinho chanel, de franja. Estava com algumas colegas a caminho da sala de artes no colégio. Naquele corredor havia vários meninos um ano mais velhos. Formavam um corredor humano, e teríamos que passar entre eles para chegar até a sala.



Nesse percurso, um deles me pegou por trás, me levantou do chão e ficou me exibindo para os demais falando algo que não me recordo. Eu me debati, xinguei, esperneei e ele me soltou após receber um golpe nas partes baixas.

Nunca mais me esqueci daquela sensação. Um nojo, uma raiva. Ninguém fez nada para me ajudar. Todos olhavam. Apenas olhavam. E riam. Aconteceu em 1987.

Anos mais tarde, já na faculdade, semanalmente eu era obrigada a passar por um corredor de marmanjos da engenharia quando saía da última aula do no Prédio 15 da PUC. As estudantes de arquitetura iam sair da sala e eles se distribuíam de forma estratégica para assobiar e falar besteiras.
 
Toda mulher sabe como é desagradável ser obrigada a passar entre vários homens que agem como urubus na carniça querendo provar sua masculinidade para os demais.

Outro dia me deparei com um vídeo com uma cena repulsiva. Um homem, numa ocasião festiva, pegava uma menina de biquíni. Ele chegava por trás, passava a mão direita nas costas dela que, incomodada com esse primeiro toque, leva sua mão esquerda para afastar a mão do homem do seu corpo.



Nesse momento, ele usa a outra mão para tocar os seios dela, seios infantis de uma pré-adolescente. Ela o empurra e ele sai como se nada tivesse acontecido. Só que, se em 1987 ninguém filmou a cena do garoto me agarrando, em 2021 tudo é filmado. Aquela cena foi parar nas mídias sociais.

Para o espanto de muita gente, os amigos e até os pais da garota, apareceram defendendo o cidadão de bem: “amigo da família”, “como se fosse um parente”. A negação não me surpreende. Já vi isso acontecer inúmeras vezes.

Não é fácil aceitar que sua filha foi molestada debaixo do seu nariz e você não a protegeu. Seus olhos veem a cena e negam. Mas no fundo você sabe, a verdade está ali.

Alguém ouviu a menina? Alguém perguntou se ela estava desconfortável com a situação? Alguém perguntou se ele já havia feito isso antes? Se ali, na frente de todos ele fez aquilo, será que ele fazia outras coisas quando ninguém estava olhando?

A criança às vezes se incomoda com esse tipo de ação, mas não sabe como agir. Tem vergonha de falar. Sabe que aquilo a incomoda, mas não sabe que é abuso sexual e precisa ser denunciado.





Quantas mulheres assistiram àquele vídeo e se identificaram com a menina, por que já passaram pela mesma situação?

O homem disse que o vídeo estava fora de contexto. Eu pergunto: em que contexto cabe um homem adulto pegar uma menina por trás e passar a mão no seio dela? Em que contexto isso é admissível? Em nenhum! Nenhum contexto. Nem se fosse uma mulher adulta. Nem se ele fosse da idade dela. Não há desculpas para um gesto tão repugnante!

O vídeo é assustador, e ver tantas celebridades saindo em defesa do sujeito é ainda mais descabido. Mas ilustra muito bem a cultura do estupro. A vítima não é ouvida, o abusador faz um vídeo se vitimizando e vamos mudar de assunto. Até que outro vídeo desses apareça.

Se você julgou a menina porque ela estava usando biquíni, isso é cultura do estupro. Se você acha que ela se colocou naquela situação, você culpa a vítima. Se você assistiu ao vídeo e não viu nada demais, você precisa tirar o filtro dos seus olhos.

Mais de 70% da violência sexual contra crianças acontece dentro de casa, familiares e amigos íntimos da família. A maior parte das crianças que sofre abusos sexuais não têm noção do que está acontecendo.

Nosso papel, como pais e educadores, é criar mecanismos para que as crianças saibam se proteger, saibam identificar quando algo errado acontece com elas e procurem ajuda. Se a ajuda não vem do pai ou da mãe, ela pode vir da escola, de um profissional de saúde. Escute as crianças!


audima