Jornal Estado de Minas

PADECENDO

O incomível

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Amanhece, ele se levanta e entra no banheiro. Enquanto ele está lá, ela se levanta, acorda as crianças, prepara o café da manhã, coloca roupas na máquina de lavar, passa a camisa que ele vai usar para trabalhar e a deixa na porta do banheiro. Ele continua lá dentro. Será que um portal se abre quando os homens entram ali?

Ele sai do banheiro, veste a camisa que ela passou, toma o café que ela fez e vai para o trabalho sem lavar um copo. Durante a pandemia, a empresa deixou que ele escolhesse trabalhar em casa ou ir ao escritório. Ele trabalhou em casa por uma semana, mas não deu. Mesmo com a porta do quarto fechada, o barulho das crianças atrapalhava sua concentração. Isso quando não tinha um barulho de aspirador de pó, de liquidificador ou batedeira de bolo. Almoçar em casa, com os filhos reclamando da comida e largando tudo no prato, também era irritante. Melhor voltar ao trabalho presencial.





Chegou do trabalho e lá estava ela, descabelada, malvestida, cabelo cheirando a cebola. A casa de pernas para o ar. Os filhos de banho tomado, jantaram e logo foram dormir. Ela aproveitou para pegar seu computador para finalizar o trabalho que não tivera tempo de fazer durante o dia. Mais uma noite sem sexo, ele pensou mal-humorado ligando a TV para assistir ao noticiário.

Depois de algumas semanas, ele reclamou com ela: “Acho melhor a gente se separar, você não está cumprindo suas obrigações de esposa”. Traduzindo, ela estava sem energia para fazer sexo. Não era mais como nos tempos de namoro, ou o início do casamento.

Será que quando ele entrou naquele portal dentro do banheiro ninguém contou para ele os incríveis segredos da libido feminina?

Ela, que já estava triste, se entristeceu ainda mais. Se esforçava tanto por ele, pelos filhos, pelo casamento... Culpada, naquela noite ela fez sexo mesmo sem nenhuma vontade. Nem precisou fingir um orgasmo porque ele não estava prestando atenção.





Aos domingos, ele saía para jogar com os amigos, voltava na hora do almoço, suado e fedendo, se sentava na poltrona dando aquela conferida nas bolas e entrando no modo “caixa do nada”, mudando de canal sem parar. Só parava para gritar com as crianças para elas pararem de gritar. E, claro, aproveitava para reclamar com a esposa sobre ela não dar educação para os filhos, que também eram dele.

E seguiu reclamando da falta de sexo, e chegando em casa cada vez mais tarde. E ameaçando separação. E ela seguiu com medo das ameaças. Não queria ser uma mulher separada. O que a família ia falar? Ela não podia ficar sem marido. Quem ia sustentar a casa? O salário dela não dava para nada, e ele fazia questão de lembrá-la disso. Não tinha coragem de contar para as amigas, não queria que elas soubessem que seu casamento não era perfeito. Sentia-se culpada por não sentir desejo. Ele era um homem tão bom! Ela tinha que dar conta, precisava se esforçar mais.

Um dia, acordou se sentindo mais cansada que o normal. Sem forças. Só queria chorar. Uma amiga apareceu de surpresa e ela não pôde evitar, acabou contando tudo. Conversando, se sentiu acolhida e foi enxergando as coisas de outra maneira. Depois daquele dia, foi se fortalecendo. Foi entendendo que, se ela não sentia desejo por ele, não era culpa dela, ele tinha se tornado incomível. Não era próprio para consumo. Era indigesto.





Quando ele voltou a falar em separação, ela aceitou sem pestanejar. Ele perdeu a voz, arregalou os olhos, o queixo caiu. Tentou disfarçar bancando o machão: tem certeza?. Sim, ela tinha certeza.

Ele prometeu continuar fazendo tudo pelos filhos, combinou o valor da pensão alimentícia e os detalhes da guarda compartilhada. Os filhos ficariam com ela de segunda a sexta, já que ele precisava trabalhar. Ele ficaria com as crianças nos fins de semana. Ela adorou a proposta, mas com ele passando a semana com os filhos e ela os pegando nos fins de semana. Só assim ela poderia investir na sua vida profissional e ter uma renda decente para cuidar de si mesma.

Ele poderia aproveitar a oportunidade para aprender a ser pai. Não foi uma decisão fácil, nenhuma mãe quer ficar longe dos filhos. Seria julgada pela escolha, mas o que os outros pensassem dela era problema deles.

Ele desistiu da separação, prometeu mudar, prometeu melhorar, mas era tarde demais. Ela tinha descoberto que ele era incomível, jamais voltaria a despertar seu desejo sexual. Ela não ia mais aceitar sofrer violência psicológica, ela não ia mais acreditar em promessas que nunca seriam cumpridas. Ela queria alguém que a completasse, que compartilhasse sonhos, que dividisse tarefas. Ela se encontrou e descobriu que não precisava de ninguém para ser feliz.

Ela se libertou de uma prisão e virou estatística. Mais um caso de feminicídio. Homens incomíveis não aceitam não como resposta, são fracos e, como lhes falta inteligência para argumentar, fazem uso da violência. Como se violência fosse demonstração de força, quando é a mais pura demonstração de fragilidade.




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