Jornal Estado de Minas

AZMINA

A palavra das mulheres na preservação cultural indígena


Sem as mulheres, as culturas indígenas dificilmente teriam resistido no país. Desde 1500, práticas de etnocídio sufocam os saberes dos povos originários. Nesse cenário, mulheres lutam e resistem para transmitir e perpetuar conhecimentos tradicionais em suas comunidades, e, em 2022, foram reconhecidas por esse papel pela ONU (Organização das Nações Unidas). 





Neste mês de abril – com a celebração do Dia dos Povos Indígenas (19), para conhecer mais sobre a luta de mulheres na preservação de suas culturas por meio da escrita, AzMina conversou com Eva Potiguara, gestora do Mulherio das Letras Indígenas. O coletivo de autoras indígenas é um marco histórico onde todas essas escritoras soltam a voz em rede, “para nos firmar e nos fortalecer em nossas atividades e ações coletivas”. 

A estratégia de resistência cultural das mulheres indígenas sempre foi a palavra, a oralidade. As ancestrais conseguiram preservar seus saberes por gerações passando, às e aos descendentes por meio da língua, histórias, cosmovisões e simbologias de seus povos. Mas, infelizmente, nem todos os povos tiveram esse privilégio. Quando os portugueses chegaram ao país, havia entre 600 e mil idiomas falados em território nacional. Hoje em dia, apenas entre 160 e 180 línguas indígenas resistiram. Esses números não são apenas um reflexo do apagamento cultural, mas também de violências e injustiças.

Mesmo sendo de extremo valor para cada povo, as línguas indígenas têm desaparecido a passos rápidos. De acordo com dados do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da ONU, ao menos 40% dos mais de 6 mil idiomas mundiais falados em 2016 estavam sob risco de desaparecimento. A maioria deles eram indígenas. Em 2019, 4 em cada 10 línguas indígenas corriam o risco de desaparecer. 





Em 2022, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) declarou a Década Internacional das Línguas Indígenas, para valorizar e salvaguardar o patrimônio linguístico e cultural dos povos originários. Porém, essa luta não é recente, e nem é tocada só por grandes organizações. A preservação da língua é prioritária para mulheres indígenas, que tradicionalmente se concentram na sua preservação, como acontece no Mulherio das Letras Indígenas, formado em 2022. Pelos livros, elas levam para o campo material o que oralizam há milênios.

Com suas diversas linguagens, mulheres indígenas atuam para romper com o silenciamento de suas vozes nas lutas antirracistas e anticoloniais, de preservação das florestas e em defesa dos direitos humanos dos povos originários. Eva Potiguara, representante do coletivo, nos apresenta a literatura como uma flecha de defesa e ao mesmo tempo um passarinho para os saberes originários:  

AZMINA: Qual a importância das mulheres para a preservação cultural indígena? 

Eva Potiguara: As mulheres sempre trouxeram em seu cotidiano a conservação, valorização e manutenção das distintas culturas indígenas em cada povo. Isso é feito no  trabalho na casa de farinha, na colheita do milho, no preparo da tapioca e do mingau de mandioca e ao sentar à luz da fogueira, da lua e das estrelas para contar as histórias, cosmovisões e simbologias de cada povo. 

As mulheres, especialmente nossas ancestrais, deram a nós os olhares dos nossos povos. Os povos têm suas diferentes formas de ver – a natureza, o universo, as relações ambientais, com o tempo, com todos os elementos da natureza – e esse saber da tradição é muito valioso para nós. 





AZ: De que forma o Mulherio das Letras Indígenas vem atuando para a conservação das culturas originárias?

Eva: A gente vem buscando trazer as linguagens e os processos sócio-históricos e antropológicos delas para o público, a partir de uma expressão individual e coletiva, de cada mulher que faz parte do coletivo. Cada uma de nós representa visões do outro e de si, trazemos a riqueza dos olhares de nossos povos e esse processo de escrita traz essas historicidades. 

O papel do Mulherio é registrar em obras físicas a história de vida das lutas de mulheres indígenas e de seus povos, do mesmo jeito que buscamos apresentar as suas cosmovisões poéticas, que não seguem os padrões de uma academia eurocêntrica. Buscamos olhares diferenciados e descompromissados, quebramos esses paradigmas de uma literatura eurocentrada. Nossa poética, nossa maneira de produzir as prosas, contos e poesias não seguem cânones. Nosso foco é descolonizar e aldear a literatura. 

AZ: A literatura pode ser considerada tão importante quanto a oralidade para os povos indígenas?

Eva: A literatura, para nós, se tornou como um pássaro que quebra fronteiras do tempo e do espaço. É onde podemos, a partir das inspirações das narrativas, trazer a cosmovisão de cada povo e denunciar as armadilhas racistas que ainda hoje são muito fortes no país. São mais de 500 anos de colonização, etnocídio e apagamento de nossos saberes espirituais e culturais, e estamos em grande movimento de retomada, reivindicando a nossa língua, buscando trazer os saberes da oralidade para os saberes da literatura e a usando como uma arma, uma flecha de defesa e resistência. 





A literatura nos leva a todos os espaços e isso é emergente, porque precisamos ocupar todos os locais. Precisamos mudar a mente das pessoas que ainda veem os povos indígenas como selvagens, pessoas inábeis sem arte e sem inteligência. Devemos mostrar nossos diferentes olhares, e a escrita tem sido uma forma de aldear politicamente e culturalmente a literatura.  

AZ: O que todas nós podemos aprender com as mulheres e autoras indígenas?

Eva: A luta das mulheres indígenas tem sido muito dolorosa e muitas vezes silenciada. Nossas ancestrais tiveram que se calar para sobreviver. Nós, suas filhas, netas, tataranetas, temos que falar para viver. As mulheres indígenas são vítimas de estupros, não só do corpo, mas também da alma, emoções, saberes e cultura. Trazemos no nosso DNA uma memória de muita dor, e por isso devemos destacar a preservação de nossas culturas enquanto luta constante. 

Vivemos ainda em uma sociedade machista, racista e excludente, e o protagonismo dessas mulheres indígenas pode contribuir para a quebra dos paradigmas patriarcais. Os olhares de mulheres escritoras podem contribuir para novas percepções do ser indígena, formas de olhar não só mais humanizadas, mas que vão consumar paradigmas racistas, misóginos e eurocentrados.  

AZ: Você pode indicar cinco livros escritos por mulheres indígenas?

Eva: O primeiro é “Metade Cara, Metade Máscara”, de Eliane Potiguara, uma obra maravilhosa e que acho bastante pertinente para quem quer ler autoras indígenas. Também indico todos os livros da Márcia Kambeba, que fala muito sobre o tema ser indígena, tanto em poema quanto em prosa. Acho o olhar de Truduá Dorrico em “Eu sou Macuxi e outras histórias” fundamental para entender as cosmovisões indígenas. 

Em “Livro sem letras”, Telma Tremembé traz como as emoções e os sentidos dos povos indígenas se relacionam com a vida e a natureza, é uma obra sem palavras. E também aproveito para indicar o meu livro “Aby Ayala Membyra Nenhe’gara” ou “Cânticos de uma filha da Terra”, onde busquei, na escrita, uma forma de suprir tanta dor e tantas injustiças provocadas pelas violências sociais que nós, mulheres, ainda sofremos. Ele foi inspirado nas minhas avós, nas mulheres que foram silenciadas e apagadas. E, por meio da poesia, apresento as cosmovisões do povo do qual fui extraída.