Jornal Estado de Minas

BRASIL S/A

Mudando o jogo

A desinflação consistente, que põe em causa a ortodoxia paralisante do arrocho monetário pelo Banco Central, e a descoberta tardia, pois já era conhecida desde as eleições de outubro, pelo governo, de que a maioria parlamentar é conservadora e também quer ser protagonista na formulação dos rumos do país trazem elementos construtivos à mesa.



Ou não. Dependerá de como as partes queiram que seja, com a mediação do setor privado da economia, cuja omissão em situações semelhantes à atual explica parte da disfuncionalidade do nosso sistema político. Nem o governo, que precisa acertar-se com essa maioria sem ter que se render, nem o Congresso, desprovido dos instrumentos para governar, já que o regime não é parlamentarista, são instituições soltas no ar.

A proposta em discussão na Câmara para reformar a tributação sobre o consumo de bens e serviços já explicita o embate de interesses, o que é legítimo numa democracia. O sistema tributário vem sendo remendado desde que a Constituição foi promulgada em 1988, e há 20 anos se fala em reformá-lo. Interesses contrários, envolvendo grupos empresariais, governadores etc., representados por meio de deputados e senadores, é que impedem a sua revisão. E o Congresso reflete o que representa.

É neste sentido que o presidente Lula tem a oportunidade de promover uma espécie de reset do governo, aproveitando a mudança de assentos dos ministérios para propor um programa mínimo de modernização tanto da governança do Estado quanto das diretrizes para o desenvolvimento.



Um Congresso conservador dificilmente contraria a base que o elegeu, e nela o empresariado é ator relevante. O governo social-democrata, em tese, serve a população menos ouvida, notadamente a das periferias.

Ambos, Congresso e governo, se estiverem unidos no propósito de pôr a voto uma proposta tributária da qual se conhecem as diretrizes, mas não o texto final, poderão enfrentar o veto dos lobbies. O desafio a um acordo entre Lula e o presidente da Câmara, Arthur Lira, envolve o compromisso com a revisão dos impostos. Essa é a prioridade da hora.

Uma negociação adulta sobre o país é para unir, não desunir. Afinal, a vontade de todos é criar mais PIB, riqueza e empregos, não é mesmo?

Oportunidade da desinflação

Uma estratégia combinada para conciliar um texto que simplifique os tributos, tenha poucas exceções e não aumente a carga tributária é o que se espera dos poderes. Acertando tais princípios, a construção da agenda para os próximos passos fica mais fácil. Isso não passa por um combinado para 2026 entre a social-democracia e a centro-direita.

Sem muita elaboração, pode-se dizer que o momento é propício para um ajuste das engrenagens políticas, dando-se transparência às conversas a fim de dissuadir as barganhas mesquinhas de interesses paroquiais e as de matriz ideológica. A desinflação ajuda a relaxar o ambiente, já que desanuvia os cenários do mercado financeiro, cuja opinião impacta o noticiário da imprensa e influencia o posicionamento dos políticos.



O IPCA recuou 7,95 pontos de percentagem (pp) em 12 meses até maio, já estando abaixo do teto da meta e 0,69 pp acima da meta central (de 3,25% este ano e 3% em 2024). Selic a 13,75% é o ponto fora da curva. A inflação pode subir depois de julho, mas sem mudar o viés de baixa.

Estivesse a Selic em 8% (pouco acima do crescimento nominal do PIB previsto para o ano, portanto, nem contracionista nem expansionista, com ajuda do novo regime fiscal), significaria taxa real de 2,4%. A questão é a velocidade para tirar 5,75 pp da Selic. No padrão de 0,50 pp, levará 11 reuniões do Copom - uma eternidade, considerando-se os tempos da política, e 2024 será ano eleitoral, e da economia acuada.

Não fosse a timidez empresarial e a pauta seria o risco de recessão no segundo semestre e não de recidiva da inflação, com o que se apega o BC para adiar o início do ciclo de baixa dos juros.

Uma agenda de circunstância

Se vier de fora para dentro do Congresso a preocupação com o excesso de “zelo” do BC, o empresariado, sobretudo do varejo e da indústria, serão ouvidos de pronto, como o agro. Cabe mais ao capital produtivo que ao governo fazer tal ponderação, até porque a autonomia do BC foi dada pelo Congresso sem o estatuto de cláusula pétrea.



Uma agenda de circunstância entre o governo e o Congresso, ou, mais especificamente com a Câmara, onde o ativismo político se mostra mais acentuado, começa pelo diagnóstico do ambiente econômico e social e o que ambos podem fazer para melhorá-lo. A Câmara, por exemplo, aprovou o novo regime fiscal proposto pelo governo, e falta o Senado. Talvez algum corte de gastos possa ser inserido em comum acordo com a Câmara. É arriscado contar apenas com o corte de subsídios tributários.

Noutro caso, a reforma tributária, matéria constitucional, é tema só do Congresso, pois não está sujeita a veto presidencial. Cabe-lhe ajudar a formulação e tramitação, tanto quanto ao empresariado, ainda dividido sobre questões cruciais, como o tamanho da alíquota do novo imposto a ser criado no lugar do ICMS e de outros e do fundo de desenvolvimento para substituir os incentivos do ICMS usados pelos governadores.

Quanto mais a cúpula do Congresso estiver alinhada ao governo nessa matéria, mais o contribuinte final do ônus fiscal será beneficiado.

Do bê-á-bá digital à IA

Um diálogo entre Executivo e Parlamento, enfeixado por estes marcos de segurança institucional, seria a melhor resposta à criminalização da política, que ainda é forte no eleitorado, dando mais legitimidade e, assim, confiança, às transformações necessárias e que já tardam.



Talvez as lideranças do Congresso possam sensibilizar o governo que a jornada da digitalização ampla e universal da gestão pública e dos sistemas produtivos das empresas não se resume, por exemplo, a ganhar tempo na renovação da CNH ou à dispensa do anacronismo cartorial. É o que impulsiona a economia moderna e antecede mudanças tecnológicas de toda ordem, da massificação da telemedicina à transição para veículos movidos a baterias elétricas. Estamos ainda no limiar dessa onda.

Enquanto discutimos o bê-á-bá da economia digital, na Austrália a discussão envolve o emprego maciço de inteligência artificial (IA) no cotidiano da administração pública e das empresas. Isso é coisa de nerd, dirá o cético (sem ofensa: desinformado). Olhe-se, então, para a Indonésia, onde um e-commerce local e privado criado depois de 2017 contribuiu com 2,2% do PIB do país no ano passado graças às operações de 17,7 milhões de empresas grandes, pequenas e micros cadastradas.

O que viabilizou a Indonésia ultrapassar a fronteira tecnológica foi o cadastro único lançado pelo governo em 2017, inspirado no modelo da Índia, que, por sinal, está exportando sua tecnologia digital para os países pobres e emergentes como contraponto à influência chinesa. Que é crescente no Brasil, e tende a ser dominante no setor de energia.

E isso por quê? Porque nos perdemos em alguma esquina dos anos 1980, quando deixamos de ser a economia de maior dinamismo do mundo, e nos autoimpusemos restrições imaginárias. Querer tornar este país grande, como li outro dia, difere muito de querer criar um país onde todos possam se tornar grandes. Voltarei ao assunto. O resto é... resto.