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Pit stop tático para o governo depois de revelado o regime fiscal

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Desta vez foi diferente: o governo anunciou o regime fiscal que vai substituir o teto de aumento do gasto público e a bolsa voltou a operar acima dos 100 mil pontos e o dólar recuou para perto de R$ 5. Tais sinais são de normalidade ou de continuidade da anormalidade?

A questão é objetiva na forma. Afinal, o governo Lula, eleito com a ideia de retomar o desenvolvimento com política industrial ativa, tal como estão fazendo as economias avançadas para enfrentar o progresso acelerado da China e outros asiáticos e dar resposta às percepções de empobrecimento de seus eleitores, baixou seu voo por livre vontade.





As respostas, e há mais de uma, por isso são subjetivas. Ele indicou entender que lhe será difícil superar a falta de maioria no Congresso majoritariamente de direita e dominado por setores econômicos alheios às carências da manufatura e ao nosso atraso tecnológico.

Vamos pôr algum contexto nesta discussão.


O presidente Lula assumiu sem programa econômico pautado conforme as obrigações desta década marcada por tecnologias disruptivas. Também vem sendo acossado diuturnamente pelo fundamentalismo neoliberal dos traders de papéis (e, como sempre faço a ressalva, não bem dos bancos tradicionais, mais sintonizados com os desígnios dos governantes).

Com mercado financeiro e Banco Central hiperortodoxo alinhados, mais a convicção irrealista de uns, e cínica de outros, de que o país está diante de grave crise de endividamento descontrolado, “abismo fiscal” como dizem para meter medo nos incautos, Lula precisa de tempo para equilibrar melhor seu ministério à luz dos interesses que comandam a Câmara e o Senado e das urgências da economia e das demandas sociais.





Entre cair da cadeira e dar um passo para trás, o presidente optou pelo convencional, liberando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a montar um novo regime fiscal o mais perto possível do paladar dos fundamentalistas, enquanto avalia tempo e abrangência para um reset de sua governança. Para tanto, precisará do empresariado unido, da indústria ao agro, e formulação engenhosa, que ainda não dispõe.


Passadismo macroeconômico


E volto à pergunta: normalidade ou persistência da anormalidade? Depende de quem pergunta. O novo regime fiscal atende a fiscalistas do mercado financeiro que veem o Brasil à beira da insolvência. Não é assim, mas serve para vetar políticas ativas de desenvolvimento.

Como tem eco na imprensa, no Congresso e em parte do empresariado, o passadismo macroeconômico é influente na última grande economia no mundo a desprezar a coordenação do Estado para apoiar a expansão dos negócios privados, da inovação tecnológica e do bem-estar social.





O novo regime fiscal se faz necessário por isso, não porque o Estado seja intrinsicamente ruim. O programa a ser levado ao Congresso prevê equilíbrio entre receitas e despesas primárias (que exclui os juros da dívida pública) da lei orçamentária, em 2024, alcançando superávit de 0,5% do PIB em 2025 e de 1% em 2026. Metas duras para o triênio, partindo de déficit primário de 0,8% a 1,1% do PIB este ano.

Tais resultados devem contribuir para desacelerar o ritmo da dívida pública, de 73% do PIB em 12 meses até fevereiro no conceito bruto ou de 56,6% em termos líquidos, abatendo as reservas de divisas do país. Para reforçar essa trajetória, a expansão do gasto será atrelada à da receita, com teto e piso para a despesa, incluindo investimento. Nem o Estado se asfixia nem os governantes poderão gastar fora da linha.


O normal versus o anormal


A melhoria da receita é componente essencial do novo regime, mas o governo exclui a criação de impostos e aumento de alíquotas. Haddad quer apoio do Congresso para abolir o que chama de “jabutis” – meios cabulosos usados por empresas para evitar impostos e até sonegá-los, tipo registrar exportação de grãos num paraíso fiscal no exterior.





Na conta do ministro, abatendo tais jabutis e revisando se ainda se fazem necessárias as desonerações (“gastos tributários”, no jargão da Receita) que desfalcam a arrecadação, pode-se reaver R$ 100 bilhões a R$ 150 bilhões em 12 meses. Trata-se de demanda antiga.

Por esta ótica, anormalidade é atender reclamos inconsistentes dos operadores do mercado financeiro, enquanto normalidade é tudo o que moralize a administração financeira e tributária, além de elevar a eficiência dos serviços prestados pelo Estado. Este é o equilíbrio que pode distinguir o governo Lula: entregar o que faça sentido das pressões dos rentistas, ao mesmo tempo em que se apoia nas entregas pontuais para reformar o que ficou obsoleto.

Tal estratégia pode dar autonomia ao governo para plantar políticas que contemplem o relançamento da manufatura, a única forma de o país crescer gerando empregos qualificados, que vão mover as rodas do setor de serviços, maior empregador líquido na economia. O agro gera divisas, mas emprega pouco e quase não paga impostos.





Ultraje dos ilusionistas


Se conseguir se desvencilhar da agenda fundamentalista de mercado, o que se espera do novo regime fiscal, o governo poderá reaver o poder da narrativa da economia hoje ditada pelas atas, notas e declarações do BC, potencializadas pelos porta-vozes da corretagem de papéis.

Não se conhece caso no mundo de dirigente de banco central que saia a ralhar, como chefe de disciplina da quinta série, a política fiscal aprovada pelo parlamento e executada pelo governo. Dirigente do Fed, do Banco Central do Japão, da Inglaterra, Europa do euro não fala mal de quem lhes deu autonomia, ou seja, o parlamento. Falam de inflação, de estabilidade bancária, dos marcos sociais de suas ações. E ponto.

Se há algo a destacar nas notas do BC são as reservas de divisas de US$ 368 bilhões, o déficit em conta corrente baixo, bancado com folga com investimentos estrangeiros, e superávits da balança comercial. É o que nos diferencia da Argentina sempre carente de divisas externas. Anormal, portanto, é o dólar valorizado. E o BC pode mais.




 
Poderia começar a destacar a dívida pública no conceito líquido, que está em 56,6% do PIB, 16,4 pontos percentuais abaixo da sua medida em termos brutos, e pode chegar a 45% – como afirma o economista André Lara Resende, coautor da reforma monetária de 1994 com Pérsio Arida –, se trocarmos as operações compromissadas da banca com o BC por depósitos remunerados e deduzirmos o caixa líquido do Tesouro.
 
Não há por tais critérios um país insolvente, mas um país ultrajado pelos que se apresentam como guardiães da integridade monetária. Se o governante se dispuser a desarmar as armadilhas mentais a que fomos aprisionados, vai-se constatar que bons projetos, visão de futuro e a iniciativa de empreendedores verdadeiramente capitalistas são nossas grandes carências, não a austeridade dos traders de ilusões.