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Embargos expõem escalada da guerra comercial entre Washington e Pequim

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Antônio Machado


Shhhh... Não quero perturbar a baixaria da campanha eleitoral, mas há coisas sérias intrigando o mundo que é melhor ficarmos espertos. Não falo das bravatas nucleares de Putin na Ucrânia. Isso é com os europeus, espera-se... Falo de outra guerra, anunciada sem tiro nem bazófia no último fim da semana, que, se levada adiante, impactará o comércio global em centenas de bilhões de dólares anualmente.





Negando anúncios recentes do secretário de Estado, Antony Blinken, segundo os quais os EUA não procuram uma “guerra fria” com a China, o escritório de indústria e segurança do Departamento de Comércio divulgou um denso documento com 139 páginas ampliando sobremaneira, com dezenas de restrições, os “controles adicionais de exportação” de ítens de computação avançada e de fabricação de semicondutores.

O embargo inclui restrições a acordos de colaboração com entidades chinesas de pesquisa e de licença de tecnologias visando proteger a segurança militar dos EUA. Mas as implições econômicas têm maior alcance, já que itens de inteligência artificial e desenvolvimento de chips avançados são hoje onipresentes na indústria comercial e de serviços, indo de veículos e máquinas agrícolas automatizadas a exames clínicos, equipamentos de energia e inovações financeiras.

Semicondutores estão para a vida moderna como a energia elétrica e o petróleo entre o fim do século 19 e o início dos anos 1900. Nada mais se faz sem as minúsculas placas de silício, com informações e comandos gravados, inseridos em tudo o que hoje alimenta, protege, movimenta, distrai, aquece e nos esfria. Nele está o poder.





Só que o grosso de bens industriais à venda no mundo sai da China, que importa pouco para o porte de sua demanda interna, país com 1,3 bilhão de habitantes, sobretudo alimentos e minérios, mas é muito para exportadores de insumos, com Brasil à frente de todos.

O mundo interconectado das cadeias de produção desabará se houver algum solavanco, como vimos no auge da pandemia da COVID-19 e em menor grau na invasão da Ucrânia pela Rússia. Isso é o que põe em risco a escalada de restrições dos EUA ao acesso a inovações tecnológicas, se tiver êxito com o que pretende: sufocar o avanço tecnológico da China, entendido como desafio à sua hegemomia no mundo.

Todas as opções são ruins

Foquemos o que isso significa para nossa segurança econômica, hoje amplamente dependente das exportações de alimentos e minérios. A China é obcecada com a soberania alimentar. Até o final do ano, a China, com 20% da população mundial, deverá ter em estoque cerca de 65% do milho e 53% do trigo do mundo. Parece muito, e é, sobretudo para quem a abastece, como Brasil, mas corresponde a apenas 5% de seu déficit total de produção própria de alimentos.





A China importa apenas 10% do milho que consome, mas isso a torna o maior importador de milho do mundo. Consome quase 120 milhões de toneladas de soja por ano, equivalentes a toda a safra de grão dos EUA, mas importa 62% de toda a soja comercializada no mundo.

Cerca de 30% dessas importações vêm dos EUA, e boa parte do resto do Brasil. Sem a soja, grande parte da principal fonte de proteína da China, sua enorme indústria de carne suína (a maior do mundo), entraria em colapso, segundo informe da inteligência dos EUA.

Agora, suponha que o embargo dos EUA de suas tecnologias vitais seja bem-sucedido. Qual será a sequela: uma nova guerra fria, uma guerra quente, a desaceleração de seu forte crescimento econômico? Nenhuma dessas opções é boa, umas são piores que outras, mas todas comprometem a nossa soberania econômica. E ninguém tem tais temas na agenda de prioridades, nem as FAs, mais preocupadas com o que não lhe diz respeito, como a integridade das urnas eletrônicas.




Subemergente consciente

O desenvolvimento como esteira do sucesso econômico e paz social era tema frequente até 40 anos atrás nas entidades empresariais, nas universidades e na área militar. Hoje, impera a mediocridade.

De repente, tudo se perdeu, jovens egressos das universidades dos EUA e de cursos de MBA mudaram o foco para o mercado como indutor mais qualificado do desenvolvimento que o planejamento, que nunca foi só da burocracia do Estado, mas um híbrido público e privado.

Isso em meio ao legado do regime militar, inflação descontrolada e crônica escassez de divisas, impôs o saneamento fiscal como a prioridade da vez. A inflação se endereçou com a reforma monetária de 1994. A dependência de dólares foi eliminada com a formação de reservas a partir do primeiro governo Lula, US$ 370 bilhões, mais que o total da dívida externa, feito que seus adversários ignoram.





E o ajuste fiscal? Se no início os déficits orçamentários vinham do gasto público financiado com emissão monetária, com o tempo os novos procedimentos de contabilidade pública e de controle deveriam ter solucionado. Fracassaram não por erro de implementação, mas porque o Estado foi sendo capturado por interesses empresariais, sob o disfarce de partidos fisiológicos e o manto da ideologia neoliberal de que o planejamento seria nocivo ao bem-estar, secando as fontes dos fundos que moviam a indústria. Sobraram apenas para o agro, que deslanchou, mas porque havia demanda externa garantida.

Ascensão de outra ordem

É este o pano de fundo e contexto dos EUA no mundo, também vítima do fundamentalismo de mercado desde o governo Reagan. Teve sucesso na estratégia de colapsar a cambaleante União Soviética, pondo fim à chamada Guerra Fria entre ambas as potências, rivais da época. Mas plantou a semente da decadência econômica, ao matar o forte keynesiasmo, que vinha da 2ª Guerra, com desregulamentação, corte de impostos dos ricos e controle da inflação por meio de juros.

A alocação de fábricas de empresas americanas em países com baixo custo salarial e tributário e nenhuma regra ambiental, sobretudo a China, importando o que antes produzia localmente, minou a riqueza da sua então frondosa classe média, vindo bater em Trump, em 2016.





Ele prometeu fazer a América grande outra vez, o acrônimo Maga em inglês, num processo malsucedido, que misturou ódio contra negros e imigrantes, restrições à China, e fez emergir a extrema-direita.

O “fundamentismo de mercado”, como os críticos de direita definem o neoliberalismo, foi mantido com Trump, mas está em baixa com Biden e ganhará impulso se a nova direita da oposição republicana voltar ao poder. Oren Cass, um de seus gurus, escreveu que “o livre-comércio internacional não é um princípio vital de liberdade na tradição americana; foi adotado pelos piores motivos e produziu os piores resultados”. Não se trata do fim da globalização, trata-se de quem manda nas regras da ordem internacional. E nós com isso?

Se a economia da China enfraquecer ou voltar-se mais para dentro, a exportação de commodities não bastará para nos manter. E já não basta para manter a coesão social reclamada nas urnas. Que fazer?