O fiasco relativo do megaleilão do pré-sal merece avaliação fria. O bolo das grandes petroleiras mundiais inscritas para disputar os campos leiloados deve ser tomado como alerta para que se revejam os equívocos das macropolíticas em curso. Isso é o que importa.
É de somenos a lavagem de pano do governo para salvar a face (já que esperava faturar R$ 106,5 bi e recebeu R$ 69,9 bi) e os ataques da oposição (para a qual o grande capital fugiu de Bolsonaro).
A verdade é que o mundo já ingressou no chamado peak oil – não por escassez de reservas como se temia a partir dos anos 1950, mas pela gradativa redução da demanda. Hoje, produz-se mais com menos óleo.
Depois, veio o avanço das energias eólica e solar, cujo custo em partes dos EUA, na Europa e na China, graças à escala alcançada, é menor que outros insumos (carvão, gás, óleo, nuclear). E, enfim, os veículos com motor elétrico vêm chegando para ficar.Demanda por petróleo atingirá o ápice ao redor de 2035, prevê a McKinsey. Energia limpa é o futuro
Pesquisas da área de energia da consultoria McKinsey em 150 países indicam que a demanda por petróleo deverá parar de crescer ao redor de 2035, e por gás, uma a duas décadas depois. O que cresce são as energias renováveis. Elas já geram 25% da energia total consumida no mundo e tendem a dobrar essa fatia até 2050.
Adicionem-se as determinações climáticas e antipoluição. China impôs que nenhum veículo com motor a combustão poderá ser vendido a partir de 2030. Tais regras existem na Dinamarca, Suécia, Irlanda e França. Todas as grandes montadoras já assimilaram essa tendência.
Mais: há sinais de que a produção de carros no mundo bateu no pico e deve estagnar devido a um viés comportamental – a troca da compra final pelo uso on demand (aluguel temporário) e just in time (com hora marcada), sem falar nos Ubers, táxis, patinete elétrico etc.
O petróleo continuará necessário, dizem os cenaristas da McKinsey do escritório da Holanda, que atende às grandes petroleiras estatais e privadas. Mas para a área química, nem isso estaria garantido. Na divisão por setor, transportes correspondem à metade da demanda no mundo. Depois vem a geração de calor, servida por gás e carvão, e futuramente por superbaterias de fonte renovável. Não se descarta a célula de hidrogênio depois de 2030. A ruptura é irreversível.
Razões para o fracasso
Tais questões deveriam ter sido consideradas pelo governo antes de se precipitar e prometer dinheiro grosso a estados e municípios, além de impor condições ao leilão que não mais se sustentam.
Havia 12 petroleiras inscritas, além da Petrobras. Semana passada, Total e BP desistiram. Das demais, só as estatais chinesas CNODC e CNOOC ficaram, cada qual com modestos 5%. Associadas à Petrobras, arremataram sem ágio o campo de Búzios, maior apregoado. A Petrobras também arrematou dois pequenos campos. O resto encalhou.
Aventam-se várias razões para o fracasso: o sistema de partilha, o alto valor do bônus de assinatura, ressarcimento da Petrobras, incertezas regulatórias etc. Tudo isso deve ser considerado. Mas as razões estruturais ditas acima é que foram determinantes.
As rupturas são seriadas
O que esperar de um mercado em que a gigante Statoil, da Noruega, mudou o nome para Equinor para marcar sua transição de petroleira para empresa de energia e tecnologia? Ou de grandes fundos vetarem aportes em empresas poluentes, sobretudo de carvão e petróleo?
A Aramco, a enorme petroleira da Arábia Saudita, onde o petróleo brota quase que na superfície por algo como US$ 1 o barril, está abrindo capital para, tal como a Equinor, diversificar os negócios.
Essa é uma das muitas transformações disruptivas no mundo que não são especulações, são fatos em marcha. Tanto quanto dificilmente a economia global terá pela frente taxas de crescimento robustas.
Assim vem sendo devido ao aumento da expectativa de vida e à queda do ritmo populacional, especialmente em países com consumidores de renda média, público-alvo da indústria de bens de consumo duráveis que marcou o pós-guerra. E também de emergentes da Ásia, China à frente (devido à política do filho único, já revogada, mas com reversão, se houver, esperada para daqui a uma ou duas gerações).
Anacronismo e alienação
O que discutimos ou sabemos dessas mudanças radicais para inseri-las na formulação das políticas públicas e nos planos privados?
Não discutimos e sabemos pouco. Mas somos craques, desde a reforma monetária de 1994, em contabilidade e tesouraria pública – assuntos relevantes para o ordenamento econômico, mas que nada têm a ver com desenvolvimento nem com garantia de bem-estar da população no curto e longo prazo. Tesouro nos trinques é bom, mas não assegura a volta do investimento nem do crescimento por geração espontânea.
Enquanto se discutem, obsessivamente, questões orçamentárias, diz André Lara Resende, principal formulador do real, a realidade segue em frente e ficamos para trás. “Continuamos no século passado, com o século 21 a todo vapor. A ‘surpresa’ do leilão é sintomática do quão anacrônico e alienado é o debate de políticas públicas”, diz.
E vem de longe, acrescento. Desde 1994 não se fala de outra coisa, déficit, juros, inflação, e depois de 2005 de corrupção dos grupos econômicos retrógrados e dos políticos. Agora, somos experts em STF, respiramos o ar tóxico da ‘guerra cultural’, nos expomos a tolices no Twitter, e vida que segue. Para onde? Boa pergunta.