Jornal Estado de Minas

ANNA MARINA

Imbróglio envolve decisão judicial sobre importação de cannabis medicinal

Já estou tão enfarada de ouvir na TV essa história de liberação de maconha que decidi publicar o texto enviado por uma advogada para não falar besteira. Claudia de Lucca Mano atua desde 1999 na área de vigilância sanitária e é responsável pelo setor jurídico da Farmacann – Associação para Promoção da Cannabis Medicinal Manipulada/Magistral. A seguir, ela aborda a confusão criada em torno da importação legal de cannabis medicinal:

“Em julho, uma notícia abalou o mercado de cannabis medicinal brasileiro: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu expressamente a importação de cannabis in natura, bem como de flores e partes da planta, para uso pessoal e medicinal, através da Nota Técnica 35/23. A agência reguladora considerou que a regulamentação atual dos produtos de cannabis no Brasil não inclui a permissão de uso de partes da planta, mesmo após o processo de estabilização e secagem ou nas formas rasuradas, trituradas ou pulverizadas.





A medida frustrou pacientes e empresas intermediadoras, que enxergaram retrocesso na luta pelo acesso à cannabis medicinal no Brasil. O segmento é composto em sua maioria por empresas que ajudam pacientes na importação direta de produtos de cannabis, mediante prescrição médica (RDC 660).

A estrutura regulatória excepcional não é nova e nem exclusiva de produtos de cannabis. Repousa no campo de uso compassivo de medicamentos órfãos, que não possuem registro na Anvisa. Com o boom da cannabis no Brasil, os pedidos de importação por pessoa física tiveram um salto expressivo (…). Entre julho de 2022 e junho deste ano, foram 112.731 autorizações, aumento de 93%.

O principal argumento do setor é que a RDC 660 foi promulgada pela Anvisa para cumprir ordem judicial: a sentença proferida em 2018 em ação civil pública iniciada em 2014 pelo Ministério Público. A sentença compeliu a agência a permitir o acesso a produtos de cannabis medicinal, incluir a cannabis na lista de produtos controlados lícitos da P. 344/98 e permitir pesquisa científica.





No entanto, a decisão judicial não é definitiva, visto que ainda carece de análise de segunda instância, pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região. (…)

Pois bem. Diante da proibição de flores, o mercado entendeu haver descumprimento daquela determinação judicial. Três processos judiciais, que pretendem ter alcance coletivo, buscam reverter a determinação da Anvisa. Uma ação popular independente e pelo menos dois incidentes de cumprimento de sentença, manejados na própria ação civil pública de 2014.

E é aqui que entra a desinformação. Ávidos por publicar notícias positivas para o setor de cannabis, canais de mídia especializados no tema passaram a dar vazão a interpretações equivocadas das ações judiciais.

Nos cumprimentos de sentença, o juiz apenas despachou intimando a Anvisa para se manifestar sobre eventual afronta à sentença de 2018. Noticiaram que a Justiça teria determinado que a agência permitisse a entrada no país de flores in natura de cannabis. Não é verdade, pois a decisão apenas intimou a Anvisa para cumprir a sentença de 2018, que se consubstancia em obrigação de fazer: incluir em seu arcabouço regulatório instrumentos concretos que permitissem o acesso de pacientes a produtos derivados de cannabis medicinal.





(...) A propagação de que a decisão seria irrecorrível deu aos pacientes medicinais a impressão de que o assunto estava resolvido, por meio das demandas judiciais.

Também induziu a erro os mais incautos, que acreditaram que no final de setembro a Anvisa seria obrigada a voltar a autorizar a importação de flores. Em 20 de setembro termina o prazo dado pela Anvisa para pacientes concluírem os trâmites iniciados antes de 19 de julho.

Ao contrário, não há nenhuma perspectiva de solução judicial a curto prazo para esses pacientes. A ação popular, em trâmite perante a 1ª Vara Federal do Distrito Federal, encontra-se suspensa para aguardar o julgamento da ação civil pública. Já as iniciativas que pedem o cumprimento da sentença ainda não foram decididas pela 16ª Vara Federal.

A Anvisa se manifestou, dizendo que a cannabis não pode ser tratada como chá medicinal, que a Receita Federal sinalizou casos de importações suspeitas, que os proponentes das ações não são parte legítima para exigir o recuo da Agência, anexando notícias de propaganda irregular de cannabis em flor. Defendeu ainda que não descumpriu a sentença, visto que a RDC 660 existe justamente para cumprir a ordem judicial, e que a rigor o mecanismo deveria atender pacientes com doenças graves e debilitantes.





A judicialização canábica tem sido uma rota frequentemente percorrida por pacientes e defensores da cannabis medicinal em busca de tratamentos alternativos. Essa prática tem levado a decisões contraditórias nos tribunais (…). A segurança jurídica do tema ainda é incerta, instável e provisória. Dizer o contrário é temerário.

A desinformação inflamada por alguns atores desse drama confunde ainda mais aqueles que dependem dos tratamentos, os médicos que prescrevem, e as empresas que apoiam pacientes no acesso a tratamentos de saúde. Por outro ângulo, a judicialização certamente desempenha um papel importante em avanços legais. As decisões judiciais têm contribuído para a conscientização do governo sobre o potencial terapêutico da cannabis e para a pressão por regulamentações mais abrangentes, coerentes e inclusivas (…).”