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Quarentena interrompe ritual seguido por minha família na semana santa

Por causa do coronavírus, não ouvirei o Sermão das Sete Palavras e nem assistirei às procissões em Santa Luzia


postado em 10/02/2020 04:00


 
Famílias que guardam tradições estão sofrendo nesta semana santa. Trancadas dentro de casa, ameaçadas por todas as pragas da segurança e saúde, não podem participar de uma tradição que é forte laço familiar e liga todos à fé em Cristo. Desde que me lembro, a data tão importante na liturgia do cristianismo era seguida pelos Teixeira da Costa. Volto, perdoem os leitores, às tradições luzienses. E para Santa Luzia se dirigiam todos os parentes que viviam na capital e em outras cidades, não só para rezar na matriz, mas para participar das lautas refeições servidas entre um culto e outro. Tive um primo, muito guloso, que começava sua comilança na casa da minha avó e ia descendo pela Rua Direita, filando comidas diferentes em todas as casas. Que não eram poucas. Nós, crianças, esperávamos pelas raras maçãs que chegam em caixas de madeira, embrulhadas em papel de seda azul.
 
Dureza maior era o Sermão das Sete Palavras, que virava o dia. Uma de minhas primas, que morava no casarão em frente à igreja, passava parte do dia confortavelmente sentada nos degraus da porta de entrada, escutando o padre pregar. Volta e meia, cheirando o rapé que retirava da caixinha de prata que guardava na cintura, que, hoje, poderia ser confundida com uma caixinha de pó.
 
Herdei de minha prima querida Naná Gabrich, que já se foi e era muito católica, o direito de participar da tradição de vestir o sepulcro Senhor Morto. Eram duas versões: a primeira no meio da igreja, durante toda a tarde, para ser reverenciada pelos cristãos; a segunda no caixão que seria levado pela cidade, depois do descendimento da cruz. Naná plantava em sua fazenda muito rosmaninho, que era cortado na sexta-feira santa, com ramos espalhados por toda a igreja. Ao serem pisados pelos visitantes, perfumavam tudo com um cheiro que não esqueço jamais.
 
Foi Naná quem me levou para participar da ambientação do caixão, que ficava na sacristia e, posteriormente, receberia as partes de Cristo que iam sendo retiradas da cruz, colocada em frente à igreja. A tradição, que acredito ter começado com a baronesa de Santa Luzia, destinava esse trabalho só às mulheres da família. Quando a idade dava forças, subia a Rua Direita, levando lençóis de fronhas e linho bordados – encomendados por Naná para forrar o caixão. Não era fácil, existia todo um ritual para que depois, quando recebessem o corpo de Cristo, os lençóis não o escondessem.
 
Ela seguia uma tradição, algumas vezes fui convocada a restaurar algumas peças do tempo da baronesa: um manto de filó todo bordado com figuras de prata peruana e uma colcha de seda roxa, tecida com seda e fios de ouro, o mesmo ouro usado nas rendas em torno da peça. As preciosidades eram revezadas sobre a figura do Cristo morto. Depois que Naná se foi, continuei participando junto com as outras primas desse trabalho, que nos últimos anos usava uma infinidade de orquídeas, também fornecidas por minha família.
 
Depois que vi o padre encarregado da matriz entrar na sacristia usando regata, bermuda e chinelo, abri mão da tradição. Mas o padre foi transferido. No ano passado, voltei, para encontrar o novo padre, Felipe, realmente digno de ocupar posto de tanta tradição. Ele nos ajudava em tudo, até arrastando bancos da nave principal para dar caminho aos visitantes do Cristo que ficava no sepulcro montado no meio da igreja.
 
Este ano, a tradição familiar não será mantida. Espero, se continuar viva, participar, no próximo ano, dessa bela ocupação que nos dá forças para enfrentar as vicissitudes da vida. E também enfrentar o coronavírus.

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