Jornal Estado de Minas

Dos mortos, não restam só ossos. Meias de seda e couro resistem ao tempo

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 Tradição de família não se deixa de lado. Desde menina, me lembro de ir, em 2 de novembro, ao cemitério de Santa Luzia, onde a parentada toda que já se foi está enterrada, com exceção da baronesa Maria Alexandrina de Almeida, que, viúva pela segunda vez, ocupa um lindo túmulo tipo monumento, em Barra, na Bahia, onde nasceu e para onde voltou no fim da vida, levada pelo irmão. No jazigo perpétuo da cidade estão enterrados meu avô, avó, tios e para conseguir abrigar todos que foram chegando foi preciso fazer uma abertura do túmulo para colocar os restos mortais de cada um, identificados em caixas separadas.

Minha prima que mora na cidade e é a alma mater da família foi se incumbir da reestruturação do túmulo e teve surpresas curiosas. Pensava encontrar, quando muito, só os ossos dos primeiros ocupantes, e não foi isso o que aconteceu. Do meu avô, Álvaro Teixeira da Costa, enterrado em 1939, restava o salto de couro dos sapatos, porque na época os mortos iam para a outra vida bem calçados. Ninguém consegue avaliar a duração do couro, totalmente intacto, depois de tantos anos. De minha avó, Branca de Almeida Teixeira, enterrada em 1950, outra surpresa: as meias de seda com que foi enterrada estavam intactas (outro uso que já se foi), mas quando foram resgatadas entre os restos guardavam todos os ossos das pernas e pés dentro. E assim foram recolhidas.

Os anos passaram e os mortos mais recentes deixaram claro o que existe de conservador, de eterno, nos tecidos modernos.
Meu tio Geraldo Teixeira da Costa estava com o restante do terno esfarrapado. Mas perfeita estava a camisa, só que totalmente sem costuras. Conservou o mesmo formato de quando foi vestida – mas não tinha uma só costura, o tecido estava intacto. Esse tipo de retorno ao passado não tem nada de agradável, acompanhar a seleção de ossos de parentes é uma tristeza só. O que reforça o aumento substancial dos que escolhem a cremação como uma maneira mais humana de terminar a vida, sem deixar para os que ficam restos que não acabam. Como acontece com o restante dos ossos que ocupam o jazigo perpétuo de minha família na cidade.

Como o principal, vários outros familiares e parentes ocupam outros espaços. E como a cidade cresceu muito, a entrada principal do cemitério transformou-se numa verdadeira feira livre, onde são vendidos vários programas de enterro em outros cemitérios que foram criados na cidade.
E mais flores naturais, salgadinhos, um caminhão de frutas, docinhos, o movimento é grande. O que me chama muito a atenção é o número cada vez maior de flores artificiais que são oferecidas, todas elas feitas de massa, a maioria parecendo ter sido modelada em um só lugar. Essas flores me remetem às antigas coroas de flores de porcelana, ricamente montadas, que foram jogadas no fundo da igreja original, que estava caindo aos pedaços (está conservada agora). A origem das coroas era nitidamente francesa, mas quem as recolheu das sepulturas antigas, onde deviam estar, não pensou ou não percebeu o detalhe.

Vendo aquele desmanche de tão belas peças, não resisti. Escolhi algumas e trouxe comigo – só que não podendo levar para guardar em minha casa, deixei na casa de uma amiga, que tinha me acompanhado na “excursão”. Não sobrou nenhuma, um irmão dela achou que aquela riqueza podia dar azar e jogou tudo no lixo. Como também deve ter acontecido com a quantidade que deixamos ficar na igreja, ao recolher umas poucas peças para conservar um pouco da história do cemitério. Só fico imaginando se daqui a anos e anos as flores artificiais que são vendidas hoje, para substituir as naturais, terão para os da época futura o mesmo encanto que as francesas tiveram para mim.

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