Após uma década, fantasmas do passado ainda rondam Bento Rodrigues
Como estão hoje as ruínas do distrito mais afetado pelo desastre de Mariana, que ainda revelam as sombras da vida em uma comunidade soterrada pela lama
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Um dos símbolos do maior desastre socioambiental da história do país, em Mariana, na Região Central de Minas Gerais, o povoado de Bento Rodrigues foi completamente arrasado pelo rompimento da Barragem do Fundão, operada pela mineradora Samarco, em 5 de novembro de 2015. Hoje, as ruínas do povoado de certa forma resumem como 10 anos depois muitos danos se mantêm e a reparação ocorre em lugares diferentes dos diretamente afetados.
Isolados, os escombros do que fora a comunidade permanecem parcialmente soterrados por depósitos de rejeito que chegam a um metro de altura. Lentamente, vão sendo tomados por mato e árvores maiores do que postes. Nunca se tentou reabilitar o vilarejo, que agora contrasta com o casario recém-construído, colorido e murado do reassentamento Novo Bento, a 12 quilômetros de distância.
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O mesmo ocorre com a reparação ambiental. Muitos trechos aquáticos ou bordas do Rio Gualaxo do Norte, entre os municípios mineiros de Mariana e Barra Longa, não foram considerados passíveis de recuperação, segundo os órgãos ambientais nacionais e estaduais.
A forma de compensação escolhida nos acordos dos últimos 10 anos foi reflorestar matas e recuperar nascentes em outros locais. A partir da foz do Rio Gualaxo do Norte, no Rio do Carmo, não se encontram mais florestas e predominam as pastagens.
90 anos de regeneração
De acordo com a leitura de satélites da ONG Global Forest Watch (GFW), a perda de vegetação arbórea na área considerada atingida nas margens e remansos do Rio Gualaxo do Norte chegou a 213 hectares após o rompimento. Um conjunto de porções de floresta atlântica e de mata ciliar quase do tamanho do Parque das Mangabeiras, em Belo Horizonte.
O sistema de rastreamento tem como função identificar áreas onde houve grande perda de vegetação. Esse levantamento utiliza uma resolução de 30 metros e define cobertura arbórea como toda vegetação com mais de 5 metros de altura.
Desde 2016, a leitura por satélites da rede colaborativa de ONGs e instituições acadêmicas MapBiomas detectou a regeneração em 27 fragmentos de floresta nesse segmento, totalizando 23,55 hectares ou 11,06% do que foi perdido com o rompimento.
A regeneração foi concentrada em fragmentos próximos ao Reservatório Nova Santarém (Mariana), perto da Cachoeira de Bicas, na região de Bicas, em Ponte do Gama, na área de Paracatu de Cima, dentro de Paracatu de Baixo, na região de Pedras e em Barra Longa, perto da Fazenda Corvina.
Contudo, se o ritmo atual for mantido, levaria 90 anos e cinco meses para a regeneração total das florestas impactadas – um cenário que desconsidera complexidades ecológicas.
Equilíbrio comprometido
De acordo com um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e de outras instituições, os rejeitos alteraram profundamente a decomposição da matéria orgânica na floresta ciliar da Bacia do Rio Doce. A interrupção desse ciclo vital, essencial para a vida e fertilidade do solo, compromete a ciclagem de nutrientes e dificulta a recuperação da vegetação nativa.
A decomposição de folhas nativas essenciais foi reduzida, enquanto a da braquiária, uma espécie africana invasora, acabou acelerada. Esse desequilíbrio ecológico é impulsionado pelo solo modificado pelo rejeito de mineração e favorece a dominância da gramínea exótica.
O estudo foi publicado na revista “Forest Ecology and Management” e é fruto da colaboração de 19 pesquisadores da UFMG, Unimontes e instituições internacionais, como a Universidade de Oxford.
Os pesquisadores sugerem estratégias para proteger espécies nativas, como o uso de um índice de decomposição adaptado para monitoramento e a combinação de plantas com diferentes estratégias para controlar as espécies invasoras, garantindo o retorno da biodiversidade.
Ações de recuperação
Segundo a Samarco, as ações de reflorestamento e reparação ambiental envolvem o cercamento e proteção de 42,7 mil hectares, em um total de 50 mil hectares previstos no plano. Foram cercadas 3,9 mil nascentes na Bacia do Rio Doce e expedidas quase 11 milhões de mudas nativas em nove viveiros para áreas de preservação. No âmbito da compensação e recuperação, mais de 160 hectares em 180 propriedades serão restaurados, seguindo indicadores ecológicos.
“Como isso pode ser
uma reparação plena?”
Andando pelas ruínas de Bento Rodrigues, invadidas por rejeitos e onde impera o matagal alto, a advogada Maria Marta da Silva, de 61 anos, consegue reconhecer um lugar que não existe mais. Sua memória a transporta para um tempo feliz, diferente de agora, já que ela ainda não mora no Novo Bento Rodrigues, para onde estão sendo levadas famílias reassentadas. Tristeza ainda maior visto que seu pai, Filomeno da Silva, de 91 anos, sequer chegou a conhecer o reassentamento: faleceu em 27 de maio de 2025.
Algumas paredes ainda sustentam partes da casa onde Maria Marta morou com os pais, no povoado arrasado pelo rompimento da Barragem do Fundão. O quarto dela, no alto da edificação de três andares, não existe mais. Ficaram aparentes partes da cozinha e de cômodos reconhecíveis apenas pelos olhos e pela memória afetiva da antiga moradora.
“Tinha um quintal enorme, com 53 pés de jabuticaba, pés de café, pés de laranja, bananeiras... A casa no reassentamento de Novo Bento não tem 10% dessa área. Como isso pode ser uma reparação plena?”, questiona.
Sombras do passado
Caminhando rua abaixo, no asfalto que separa os passeios tomados por rejeitos e mato, ela identifica uma parede única escondida atrás das árvores como sendo o que sobrou da moradia de um vizinho. “Aqui do lado era a casa do Geraldo Inácio, que também já veio a falecer. Ali embaixo era a casa do meu irmão”, diz ela, enquanto aponta para um matagal vazio, como se pudesse ver a antiga construção. “Você não consegue nem perceber os marcos da casa. Ali ao lado tinha a casa do Geraldo Marcolino que também já faleceu. Não sobrou parede, não tem mais nada”.
Dois pontos mais conhecidos também foram arrasados. A advogada os identificou já próximo ao dique S4, feito para reter sedimentos e que deveria ter sido descomissionado. “Logo ali embaixo funcionava o Bar da Sandra, que no fim de semana ficava cheio de gente se divertindo. Aqui, tinha uma pracinha, que as crianças brincavam. E onde tem um barracão tampando era a capela de São Bento, uma capela centenária”, descreve.
Maria Marta destaca o impacto financeiro e da espera na vida de seu pai como agravantes nestes 10 anos de rompimento sem reparação ou indenização. “Até hoje nós não recebemos um centavo do que a gente tem direito. Nem indenização nem moradia, sendo que no reassentamento não teremos espaço para as nossas plantações. Como que a gente reconstitui os nossos modos de vida se a gente está perdendo o que a gente tinha de propriedade?”, questiona.
Acordos e processos
O primeiro acordo de reparação pela tragédia de Mariana foi assinado em 2 de março de 2016 pela mineradora Samarco e suas controladoras Vale e BHP Billiton. O Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) com o governo federal e os estados criou a Fundação Renova e 40 ações de recuperação social, ambiental e econômica das regiões atingidas. Investiria R$ 13,3 bilhões até 2031.
Dois meses depois, o Ministério Público Federal ingressou com ação civil pública para reparação integral pelo rompimento, no valor de R$ 155 bilhões. Ao todo, 26 pessoas físicas e jurídicas foram processadas pelo desastre, sendo 21 acusadas por homicídios dolosos e outros três crimes. Ninguém foi preso.
As investigações sobre as causas do rompimento da Barragem do Fundão apontam uma combinação de falhas estruturais, operacionais, de gestão e negligência. Segundo o Ministério Público de Minas Gerais e Ministério Público Federal, a Polícia Federal e auditorias independentes (como a Cleary Gottlieb Steen & Hamilton LLP, contratada pela Samarco/Vale/BHP), ocorreram problemas no sistema de drenagem, o que aumentou a saturação dos rejeitos e a pressão da água. Houve liquefação dos rejeitos, obras e alterações não previstas que desestabilizaram a estrutura, além de falta de compactação adequada, aumento da produção para compensar a queda nos preços internacionais, entre outros.
Ação internacional
Em 21 de setembro de 2018, o EM revelou com exclusividade que o escritório de advocacia inglês hoje denominado Pogust Goodhead ingressaria com uma ação de 5 bilhões de libras em cortes do Reino Unido contra a BHP Billiton SPL, controladora da Samarco ao lado da Vale. O processo foi protocolado em 2 de novembro.
Antes que fosse julgado, no Brasil ocorreu o acordo para “Reparação Integral e Definitiva”, assinado em 25 de outubro de 2024 e homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 6 de novembro de 2024. Prevê um valor total estimado em R$ 170 bilhões (sendo R$ 38 bilhões já investidos anteriormente) para a reparação integral dos danos sociais, ambientais e econômicos causados pelo desastre na Bacia do Rio Doce.
O processo na Inglaterra ainda não chegou a uma sentença que aponte a BHP como culpada ou inocente. A expectativa é de que isso ocorra até dezembro de 2025. Os valores requisitados pelo escritório já chegam a R$ 260 bilhões, com 23 municípios atingidos entre os clientes.
Contudo, uma ação no STF relatada pelo ministro Flávio Dino proibiu municípios e estados de proporem novas demandas no exterior, determinando que atos judiciais ou administrativos estrangeiros só têm validade no Brasil após homologação de autoridades brasileiras. Uma ação civil pública foi acertada, mas não agendada, para decidir se os municípios podem processar uma empresa no exterior.
O que diz a Samarco
A contaminação da Bacia Hidrográfica do Rio Doce pelo rompimento da Barragem do Fundão se estendeu por 675 quilômetros, desde Mariana e até o Oceano Atlântico, no litoral do Espírito Santo, resultando em 19 óbitos (com um corpo ainda desaparecido e um feto que não sobreviveu). Houve ainda suspensão da pesca e comprometimento do abastecimento em grandes cidades.
Diante dessa magnitude, a Samarco afirmou lamentar o ocorrido e projetou a reparação como um processo de longo prazo. “Lamentamos o rompimento de Fundão e reafirmamos nosso compromisso em assegurar uma reparação definitiva. O Novo Acordo do Rio Doce representa um avanço significativo por trazer mais clareza, segurança jurídica, efetividade e definitividade à reparação.”
Em termos de investimentos e projeções, a Samarco afirma ter direcionado R$ 68,4 bilhões para reparação e compensação desde 2015. O novo acordo projeta 170 bilhões a serem investidos ao longo de 20 anos. No que diz respeito às indenizações, R$ 14 bilhões foram pagos individualmente, a mais de 288 mil pessoas, até setembro deste ano.
As obrigações diretas da Samarco, que englobam reassentamentos, indenizações e reparação ao meio ambiente, somam R$ 19,5 bilhões. “No aspecto da reconstrução social e urbana, a Samarco concluiu 100% das obras iniciadas antes do Novo Acordo nos distritos de Novo Bento Rodrigues e Paracatu, entregando 389 obras, incluindo 22 bens públicos”, enumerou a mineradora.
Quanto ao patrimônio histórico, o Novo Acordo prevê o tombamento da área antiga de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, com a Samarco responsável por indenizar pelas desapropriações.
Na reparação ambiental, a Samarco tem trabalhado no reflorestamento compensatório, que totalizará 50 mil hectares. Atualmente, 42,7 mil hectares já estão cercados e protegidos, informa a empresa, além de 3,9 mil nascentes cercadas e protegidas na bacia.
“A área de compensação é aproximadamente 25 vezes maior do que os 2 mil hectares impactados entre a Samarco e a UHE (usina hidrelétrica) Risoleta Neves (Candonga). O Plano de Recuperação Ambiental (PRA), entregue em maio de 2025, orientará as próximas ações ambientais, e estudos de viabilidade serão submetidos ao Ibama para licenciamento para retirada de sedimentos adicionais na UHE Risoleta Neves”, acrescenta.
A Samarco voltou a operar em 2020. Atualmente, estima-se que se encontre acima de 60% do volume de produção de pelotas em relação ao cenário antes do rompimento, com a totalidade podendo ser restabelecida em 2028, em 25 milhões de toneladas. Cerca de 80% do rejeito resultante é formado por areia (sílica), material que é compactado em taludes. Os 20% restantes, misturados com água, são despejados em uma cava.