

O mar vai voltar a serenar para o Cruzeiro
Clara Nunes seguiu para o Rio de Janeiro e lá declarou seu amor pelo Cruzeiro. Milton se tornou a maior voz da música brasileira de todos os tempos.
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Nostálgico e um quase cinquentão, sou do tempo em que sentar na varanda da casa dos avós para ouvir histórias era uma das diversões mais bacanas da infância. Foi nesse tempo que, garotinho trajado de boné, camisa e short de panos azuis e brancos, eu passei a fazer parte da mais linda de todas as histórias do mundo, a do Palestra/Cruzeiro.
Meu avô Olimpinho foi o maior contador de histórias desse planeta Terra. Porém, não foi ele quem me apresentou a história de resistência e amor do meu Palestra/Cruzeiro. Vovô Limpinho era um flamenguista daqueles!
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O grande amor da minha vida, enfeitado de cinco estrelas bordadas em um azul celeste, me foi dado pelo meu pai. Veio da paixão dele pelo Cruzeiro, a minha oportunidade de fazer parte da torcida que, em 1921, criou um time para chamar de seu e, décadas depois, o transformou em um multicampeão.
Se o amor pelo Cruzeiro veio do meu velho, da minha falecida mãe herdei a paixão pela cultura. Ao remexer sua caixinha de fitas cassetes, conheci as duas vozes mais adoráveis da história de Minas Gerais: Milton Nascimento e Clara Nunes.
Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, Clara Nunes, menina nascida em Caetanópolis, cresceu por entre as fábricas dos bairros operários do Renascença e da Cachoeirinha, em Belo Horizonte. Lá passou a cantar nas festas religiosas.
Na mesma região morava o maestro Jadir Ambrósio. Palestrino, primeiro negro a se formar no Conservatório de Música da capital e autor do hino do Cruzeiro. Ele se encantou pela voz de Clara Nunes e a levou para o rádio, no programa de Aldair Pinto, o mesmo que, anos depois, comandaria a Charanga do Cruzeiro.
Na mesma época, Milton Silva Campos do Nascimento, o Bituca, começava a tocar nos inferninhos do centro de Belo Horizonte. Logo, a fama de sua voz divina chegou à casa da família Borges, um reduto de cruzeirenses, dos quais o filho Lô se destacava na paixão. Formava-se ali o embrião do Clube da Esquina.
Numa dessas noites, Milton assumiu o contrabaixo, enquanto seu amigo Wagner Tiso ia ao piano. Foram escalados para o trio que acompanharia Clara Nunes em uma de suas apresentações. Era o primeiro encontro das duas maiores vozes da música mineira. Eles voltariam a ocupar o mesmo palco – não juntos – nos bailes dançantes da sede do clube que lhes arrebataria os corações: o Cruzeiro, no bairro operário do Barro Preto.
Clara Nunes seguiu para o Rio de Janeiro e lá, ao encontrar a azul e branca Portela, declarou seu amor pelo Cruzeiro. Milton se tornou a maior voz da música brasileira de todos os tempos. Na década de 1990, foi convidado e aceitou se tornar o embaixador do seu Cruzeiro.
Domingo passado, quando me preparava para deixar o setor amarelo inferior do Mineirão, após ver o Cabuloso vencer o Uberlândia de virada, duas lindas e singelas bandeiras me fizeram parar. Fiquei a admirá-las. Estampavam as faces de Clara Nunes e de Bituca. Uma homenagem encantadora feita pela Resistência Azul Popular, a torcida organizada que mais representa os princípios de caráter da origem operária do Palestra/Cruzeiro.
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“Resistimos. Ainda estamos aqui. Vivos. Como é gostoso estar do lado alegre, amoroso, leve e certo da história”. Suspirei alívio, olhando o sorriso de Clara Nunes.
Caminhei, levando a minha alegria em direção à esplanada do Mineirão. Já pensando que estaria ali, novamente, no próximo domingo. Será quando o time de Clara Nunes e de Milton Nascimento enfrentará o Atlético de Lourdes, clube que nasceu como uma colônia de férias de filhos das famílias mais abastadas da elite de Belo Horizonte.
Ritmei meus passos, cantarolando uma canção de Bituca: “Coisas que a gente se esquece de dizer / frases que o vento vem às vezes me lembrar / coisas que ficaram muito tempo por dizer /na canção do vento não se cansam de voar.”
A noite caiu. Segui para casa. Com a certeza de que, graças à resistência da torcida cruzeirense, o mar voltou a serenar para o Cruzeiro. É chegado o tempo do Trem Azul voltar aos trilhos.