
Viena tem muuuuita Igreja
E assim seguimos, multiplicando templos enquanto fechamos leitos nos hospitais
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Viena tem muita igreja. Lisboa, Ouro Preto, Mariana, São João del-Rei e BH também. Esse mundo está cheio de igreja e cada dia nasce mais! Mas para que tanta Igreja? Para rezar, claro! E para quê tanta reza? Para aliviar os pecados. Mas quais pecados? Há, aí é com você. Cada um que cuide dos seus. Rico cuida dos seus por ser rico e os pobres por serem pobres. Pecado também tem classificação e classe. Não se dá e não se empresta. Com o além, não se brinca, estaremos sempre em débito.
Mas reza serve para muita coisa. Além de pagar os pecados e se conectar com o divino, serve para esquecer a tentação, espantar assombração, decolar no avião, arranjar marido, espantar marido, evitar e curar doença, eleger deputado (e até presidente). Reza é igual Bombril, serve para tudo.
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Minha mãe chamava-se Maria: católica fervorosa, me ensinou a rezar. Confesso que rezo de vez em quando. Certamente, ela se sentiria confortável em Viena, de onde escrevo a coluna de hoje, no intervalo de um congresso. Da janela do hotel, olhando apenas para um lado da cidade, contei umas 15 torres. Verdadeiros monumentos.
E não é curioso como essa proliferação de templos reflete perfeitamente a história da humanidade em seus momentos mais sombrios? Como médico infectologista, observo um padrão que se repete através dos séculos: quanto maior a aflição coletiva, mais igrejas brotam do chão, como cogumelos depois da chuva.
Durante a Peste Negra, enquanto os ratos e suas pulgas distribuíam morte pela Europa medieval, a Igreja multiplicava seus domínios, vendendo salvação a preço de ouro. Os pobres entregavam seus últimos tostões em troca de promessas de cura e vida eterna, enquanto a nobreza eclesiástica se refugiava em seus palácios santificados.
A história é uma professora irônica. Na epidemia de cólera londrina, as igrejas anglicanas pregavam que a doença era castigo divino para os pecadores - curiosamente, sempre os mais pobres, aqueles que bebiam água contaminada, enquanto a aristocracia brindava com vinho francês. Os templos se enchiam de fiéis desesperados, enquanto os cofres se enchiam de moedas de ouro, boa parte das nossas montanhas Gerais.
Hoje, nossas cidades são pontilhadas de templos de todas as denominações imagináveis. Cada esquina tem sua igreja, cada canal de TV seu pastor, cada rede social seu profeta digital. E quanto mais cresce a desigualdade, mais cresce o número de fiéis em busca de milagres. Não é coincidência que as periferias tenham mais igrejas que unidades de saúde e hospitais.
O fanatismo religioso sempre encontrou terreno fértil em épocas de pestilência e desespero. Quando a ciência falha - ou quando é deliberadamente sabotada por interesses políticos e econômicos - o sobrenatural se apresenta como última esperança. Os vendedores de milagres e “fake news” sabem disso há milênios.
E nossos governantes? Ah, esses são mestres em usar a fé como instrumento de poder. Aliam-se aos púlpitos, financiam templos, fazem suas campanhas nos altares. Enquanto isso, os hospitais públicos definham, as pesquisas científicas minguam, e o povo reza - reza muito - por uma vaga na UTI, que quando aparece, já é tarde.
A concentração de renda no mundo atual atingiu níveis obscenos. Enquanto bilionários disputam quem chega primeiro à Marte, milhões não têm acesso a esgoto e água potável. As igrejas prosperam nesse cenário como comerciantes em tempo de guerra. Vendem esperança aos desesperados, cura aos doentes, prosperidade aos miseráveis. O produto é intangível e o lucro concreto.
É fascinante observar como as grandes epidemias da história sempre caminharam de mãos dadas com o crescimento do poder religioso. Da peste bubônica à COVID-19, o roteiro se repete: quanto maior o caos sanitário, mais pessoas buscam respostas no divino. E sempre há alguém disposto a vender essas respostas.
Como médico, vejo diariamente o resultado dessa mistura tóxica de negligência estatal, exploração da fé e desigualdade social. Pacientes que chegam tarde demais ao tratamento porque primeiro tentaram a cura pela fé. Outros que não podem pagar pelos medicamentos, mas contribuem fielmente com o dízimo. A fé que ajuda nos tratamentos e move montanhas, também pode mover fortunas - das mãos dos pobres para as dos espertos.
E assim seguimos, multiplicando templos enquanto fechamos leitos nos hospitais. Elegendo pastores e banqueiros enquanto sucateamos a educação pública. Rezando por milagres enquanto ignoramos a ciência. A verdadeira epidemia que nos assola não é viral nem bacteriana - é a da ignorância cultivada, da desigualdade perpetuada, da fé transformada em mercadoria.
Como dizia minha mãe Maria, católica fervorosa, rezar faz bem. Também acho. Mas talvez precisemos rezar menos e assumirmos mais, o destino dos nossos próprios passos pelo mundo. Menos templos e mais escolas. Menos pregadores e mais professores. Menos milagres e mais medicina baseada em evidências, vacinas e saneamento básico. Menos fé cega e mais razão crítica e empregos. Já disse certa vez que onde falta a presença do Estado, sobram criminalidade, igrejas e mosquitos.
Enquanto isso, as igrejas continuam se multiplicando em Viena, Lisboa, Ouro Preto, BH e em cada esquina do mundo. E nós, profissionais de saúde, continuamos tratando não apenas das doenças do corpo, mas das consequências de uma sociedade doente que transformou a fé em negócio e a saúde em privilégio.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.