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Carlos Starling
Carlos Starling
SAÚDE EM EVIDÊNCIA

O som das sirenes do Samu

Ele não poderia imaginar o prazer que eu sentia em fazer aquela viagem, apesar das dores dos ferimentos

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O sprint na reta da Igrejinha da Pampulha era o ponto alto do nosso giro da lagoa há mais de 20 anos. Saindo da rotatória do Mineirinho, o clima no pelotão já ficava tenso, e o som das marchas trocadas anunciava o início do sprint explosivo que se dava 50 metros adiante. Disputávamos uma chegada após três voltas na lagoa, para ganhar absolutamente nada.


Foi nesse exato momento que meu pé escapou do pedal e voei, aterrissando como uma jaca no chão. Capacete partido, óculos com a lente enterrada no supercílio, e obnubilado, só me dei conta de onde estava ao despertar dentro de uma ambulância do Samu ou Resgate.

 

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Ao recobrar a consciência, olhei para o médico que me assistia e disse:


– Maravilha! Esta é a primeira vez que viajo dentro da minha própria ideia.


Ele não entendeu nada e comentou com a enfermeira:


– O paciente está confuso, ligue oxigênio a 3 litros por minuto e avise à central que vai precisar de CTI.


Claro, ele não poderia imaginar o prazer que eu sentia em fazer aquela viagem, apesar das dores dos ferimentos. Afinal, uma frase dessas, dita por um ciclista politraumatizado após arriscar um sprint entre carros, só poderia soar como delírio. Mas ele não sabia que a história era outra. E eu a conhecia muito bem.

 

 


Tudo começou numa tarde de sábado, em meados dos anos 1980, em Freiburg, Alemanha. Eu fazia um fellow em higiene hospitalar sob a supervisão do professor Franz Daschner, apresentado a mim pela Dra. Terezinha Carneiro Leão, professora na Universidade Federal do Paraná, sua fellow anterior.

 

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Naquela tarde, eu e Cristiane Nubel, enfermeira do Serviço de Transplantes de Medula do Hospital de Clínicas do Paraná, nos preparávamos para assistir a Brasil x França, quando um barulho vindo da rua nos chamou a atenção. Uma chuva fina havia derrubado um motoqueiro, que se arrastava no asfalto. Nosso instinto socorrista nos levou até a esquina, onde chegamos quase junto à ambulância da urgência. Um casal de idosos já havia chamado o serviço de socorro em uma cabine telefônica próxima. O telefone celular ainda estava longe de ser uma realidade.


Fiquei maravilhado com a agilidade e eficiência no atendimento. Lembrei-me de um dia no Hospital João XXIII, em BH, ainda residente, numa enfermaria neurológica, vi seis pacientes tetraplégicos aguardando “o próximo surto de Pseudomonas”, como sentenciou nosso preceptor, Dr. Roberto Pedersini. Aqueles pacientes, vítimas de acidentes de trânsito e de trauma raquimedular (TRM) por transporte improvisado em um Fiat 147, sucumbiam à infecção hospitalar como quem espera o anjo da morte. O odor daquela enfermaria ficou para sempre impregnado em mim. O meu interesse pela epidemiologia e controle das infecções hospitalares foi despertado nesse exato momento.


No dia seguinte, relatei meu interesse em conhecer o serviço de urgência ao Dr. Daschner, que prontamente atendeu ao pedido. Por semanas, dividi meu tempo entre o Controle de Infecções e as equipes de atendimento de urgência.


De volta ao Brasil, ao meu trabalho na Superintendência Hospitalar da Fhemig, apresentei um projeto inspirado no que vivenciei em Freiburg. Junto com Alzira, Paulo Roberto e Sandy Barreto, discutimos e mapeamos pontos críticos para acidentes na Região Metropolitana de Belo Horizonte.


Quando finalmente fomos armados de slides, transparências e argumentos técnicos de custo efetividade ao Palácio da Liberdade submetê-la ao crivo do governador. A apresentação parecia fadada ao fracasso. O governador, em meio a telefonemas e reuniões paralelas, pouco me dava atenção. Até que, diante da inutilidade dos meus argumentos técnicos, apelei:


– Governador, esse projeto vai colocar mais dezenas de ambulâncias circulando, com sirenes ligadas e “Governo Newton Cardoso” escrito nas laterais.


Ele não titubeou:


– Projeto genial, menino! Secretário, bota preço e vamos fazer para o estado inteiro.


Aos poucos, o sonho compartilhado tomou forma. Primeiro, vieram as peruas cinzas, do tipo Veraneio. Inicialmente, fiquei decepcionado. Não era aquilo que tínhamos planejado. Mas em gestão pública, aprendi que o bom é muitas vezes inimigo do ótimo. Com o tempo, o projeto evoluiu até se transformar em algo próximo do que eu havia vivenciado em Freiburg, naquela tarde em que o Brasil perdeu nos pênaltis.


Certamente, o colega que me atendeu na Pampulha não podia compreender minha felicidade ao viajar dentro da minha própria história, mesmo politraumatizado.


Hoje, vendo o trabalho heroico das equipes do Resgate e Samu, o som das sirenes que me acordam no meio da noite soa aos meus ouvidos como a Sonata ao Luar, de Beethoven. Contudo, o odor daquela enfermaria e o olhar dos pacientes tetraplégicos permanecem gravados em mim. Não há vírus, por mais devastador que seja, capaz de subtrair essa memória do meu olfato.


* Dedicado ao Dr. Franz Daschner, aos colegas da Fhemig e ao ex-governador Newton Cardoso, que nos deixou neste fim de semana.

 

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