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Estado de Minas

Hepatite B foi trazida em navios negreiros

Estudo indica que o vírus da doença chegou ao Brasil no século 19, quando a Coroa portuguesa passou a escravizar pessoas da costa leste da África


postado em 15/10/2014 00:12 / atualizado em 15/10/2014 08:57

Paloma Oliveto

Retirados à força de suas pátrias e transportados pelo Atlântico feito mercadorias, os africanos traficados no século 19 podem ter trazido para o Brasil o vírus da hepatite B. A curiosa descoberta foi feita por cientistas do Laboratório de Virologia Molecular do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Ao sequenciar o DNA do micro-organismo causador da doença, as pesquisadoras Selma Gomes e Bárbara Lago constataram que o genótipo mais comum no país não é o que circula na Europa nem na costa leste africana, de onde saíram quase 5 milhões de escravos entre 1551 e 1840. Na realidade, o perfil do patógeno brasileiro é compatível ao da porção oriental do continente, que forneceu mão de obra forçada quando a principal rota do tráfico estava sob fiscalização inglesa.

País sul-americano que mais importou cativos no período colonial, durante 300 anos o Brasil recebeu homens, mulheres e crianças originários da costa ocidental da África. Contudo, o cenário mudou na primeira metade do século 19, quando a Inglaterra passou a pressionar a Coroa portuguesa pela extinção do comércio de escravos. Se, na teoria, esse era o fim dos navios negreiros, na prática, os traficantes apenas mudaram de rota para evitar a fiscalização inglesa, que tinha autorização de buscar e apreender embarcações suspeitas. Com isso, começaram a chegar aos portos brasileiros escravos aprisionados na parte oriental da África.

A pesquisadora Selma Gomes, do Laboratório de Virologia Molecular do IOC/Fiocruz, explica que o objetivo inicial da pesquisa não era rastrear a origem do HBV circulante no Brasil, mas, ao decifrar o DNA do agente patógeno, as cientistas acabaram se aproximando dessa constatação. Ela conta que o vírus, que atinge um terço da população mundial, é um marcador populacional, pois seu material genético se difere de acordo com a localização geográfica. O micro-organismo causador da hepatite B tem oito perfis conhecidos, sendo que cada um é característico de determinadas regiões do planeta. Mesmo dentro de um mesmo genótipo há subdivisões. O vírus com perfil A, por exemplo, se divide em A1 e A2. O último circula na Europa e, no Brasil, foi trazido pelos imigrantes daquele continente. Já o primeiro está presente em populações asiáticas e africanas.

O artigo da Fiocruz, publicado recentemente na revista Plos One, lembra que a origem da população brasileira pode ser traçada a partir de três principais fontes: os ameríndios, que carregam o genótipo F da hepatite B, os colonizadores europeus, responsáveis pela entrada dos tipos A2 e D na América Latina, e os escravos africanos, que teriam importado para os trópicos o subtipo A1, quando chegaram ao país, entre os séculos 16 e 19. “Até os anos 1990, acreditava-se que o genótipo A, prevalente no Brasil, tinha origem tanto nos europeus quanto nos africanos”, conta Selma Gomes. “Entre 2002 e 2004, surgiu um trabalho na África do Sul mostrando que o genótipo A daqui é diferente do da Europa. Vimos que a maioria dos vírus que circulavam no Brasil tinham esse pé na África”, continua. Ela explica que, dentro do subtipo A1, há, ainda, dois perfis diferentes: o de ancestralidade asiática-americana e o de ancestralidade apenas africana.


Comparações

No trabalho, a pesquisadora descreve o sequenciamento de 26 vírus originados de oito estados de todas as regiões brasileiras. Desses, 23 eram do tipo A1, o africano, enquanto os três demais se encaixavam no genótipo A2, o europeu. Os genomas sequenciados foram, então, comparados aos de um banco de dados internacional. “A grande surpresa foi que o vírus do Brasil não parece ter vindo da costa ocidental da África, porque nosso genótipo é mais próximo do encontrado na costa oriental e na Ásia”, revela. Não foram esses os locais que forneceram os quase 5 milhões de escravos que entraram no país nos três séculos de intenso tráfico de escravos. Para saber como esse subtipo particular do genótipo A1 chegou ao Brasil, Selma Gomes e a bióloga Bárbara Lago foram atrás de evidências históricas que fornecessem as pistas.

Elas encontraram uma explicação plausível na Lei Bill Alberdeen, aprovada no Parlamento britânico em 1845. Pelo texto, o Almirantado inglês poderia interceptar, no Atlântico Sul, os navios negreiros e aprisionar e julgar seus capitães. Assim, evitavam a chegada de escravos ao Brasil. O país, contudo, estava longe de abandonar essa prática. Os traficantes simplesmente mudaram de trajeto. Se levavam 15 dias para alcançar a costa oeste, gastavam quatro vezes mais tempo para alcançar a porção oriental da África. Ainda assim, muitos fizeram essa viagem em inúmeras ocasiões, transportando de 300 mil a 400 mil pessoas para o Brasil. Um dos portos mais utilizados era o de Moçambique. Contudo, o país não forneceu amostras do vírus da hepatite B para que a Fiocruz pudesse afirmar que o genótipo encontrado lá era o mesmo detectado no Brasil.

Selma Gomes afirma que, em termos de aplicações clínicas, não é possível dizer que esse resultado trará algum benefício para o tratamento da hepatite B, uma doença com prevalência estimada de 0,25% a 0,5% na população brasileira. Mas a cientista não descarta a possiblidade de o sequenciamento trazer novidades sobre a doença desencadeada pelo vírus. “A gente sabe que esse genótipo que circula na África tem um potencial de causar câncer maior que o da Europa. Então, ao sequenciar o genoma dos vírus, podemos identificar as mutações que estão ligadas ao câncer”, diz.

Na avaliação de Antônio Carlos Toledo, médico da Sociedade Brasileira de Infectologia, embora não tenha aplicação clínica imediata, a pesquisa apresenta um bom potencial. “Teoricamente, conhecer o genoma do vírus possibilita o desenvolvimento de drogas para lidar com mutações e com resistências aos medicamentos. O sequenciamento abre perspectivas da nossa compreensão sobre a evolução da doença”, acredita. Agora, a equipe de Selma Gomes pretende investigar o perfil genético do HBV circulante em Cabo Verde, cuja história de importação de mão de obra escrava é semelhante à do Brasil.

 


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