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Estado de Minas

Feitos para não durar

Obsolescência programada de eletrônicos movimenta a economia, mas produz consequências


postado em 09/02/2012 11:03

Cenas do documentário de Cosima Dannoritzer: envio ilegal de lixo ao Gabão (acima); produção de lâmpadas com prazo de validade definido (centro); e a primeira geração do iPod, feita para durar só oito meses (abaixo)
Cenas do documentário de Cosima Dannoritzer: envio ilegal de lixo ao Gabão (acima); produção de lâmpadas com prazo de validade definido (centro); e a primeira geração do iPod, feita para durar só oito meses (abaixo)
Não há dúvidas de que a indústria utiliza determinados artifícios para definir a validade de alguns artigos, e isso ocorre principalmente no que se refere aos produtos tecnológicos. Desde os anos 1920, quando um cartel decidiu que as lâmpadas deveriam ter uma só duração, em torno de 1 mil horas, e assim criar demandas de consumo regulares, que é assim. Exemplo mais recente dessa prática, comprovada, foi a primeira geração do iPod, o revolucionário MP3 player da Apple, que rendeu causa à Justiça norte-americana. Tudo porque um artista nova-iorquino, Casey Neistat, pagou US$ 500 por um aparelhinho cuja bateria estava programada para durar apenas oito meses, sem possibilidade de troca. Depois disso parou de funcionar. Para a reclamação dele, a resposta da Apple foi simplesmente que ele deveria comprar um iPod novo.

O caso foi para as ruas e acabou sendo assumido por uma advogada de São Francisco, Elizabeth Pritzker, que entrou com uma ação coletiva contra a empresa da maçã, que já havia vendido mais de 3 milhões de unidades nos Estados Unidos. A Apple acabou fazendo um acordo para substituição das baterias e aumentando a garantia dos tocadores de música. Embora a empresa negue, esse foi um típico caso de obsolescência programada. Hoje, ao lançar produtos incompletos, que sofrem atualizações alguns meses depois (como ocorre regularmente com o iPhone e iPad, cujas novas versões são sempre apresentadas com alguma novidade que poderia ter estado na anterior), a Apple, como em geral as empresas de tecnologia, não deixa de estar incentivando uma obsolescência.

O que gera muito lixo eletrônico, conforme mostra a cineasta espanhola Cosima Dannoritzer no seu documentário The light bulb conspiracy (A conspiração da lâmpada), ainda sem data para exibição no Brasil. Ela vem investigando o tema já há algum tempo e demonstra, no seu trabalho, que a indústria recorre mesmo a práticas não muito éticas para determinar a validade de produtos. Segundo a cineasta, pensando em manter um crescimento com consequente geração de empregos num curto prazo, a obsolescência programada até faz algum sentido. O problema é o futuro, pois a longo prazo isso está gerando montanhas de lixo. Para ela, essa prática, que funcionou bem no passado, não pode ser usada para sempre, pois as consequências, que já estamos vivendo, são sérias.

A vida (pouco) útil dos softwares
Não só hardwares são programados para ter uma determinada vida útil. Também os softwares acompanham essa linha e contribuem para a sujeira eletrônica do planeta. Para o vice-presidente-executivo da Sucesu-MG, Marcelo Siffert, a comercialização de software é realizada de forma a dar ao consumidor acesso a última versão disponível.

Segundo ele, para que se tenha acesso às atualizações e novas versões, o mercado oferece alguns modelos ao consumidor. Um deles é a compra de um contrato de atualização e suporte, que dá ao usuário direito a ter um produto atualizado e com o suporte de funcionamento. “É uma espécie de garantia”, diz ele, ressaltando que normalmente o fornecedor cobra um percentual na faixa de 20% ao ano em um contrato. “Essa prática é bastante utilizada no mercado corporativo.”

Em outro modelo, o software é vendido por um tempo limitado e assegura ao consumidor funcionamento e as atualizações durante um determinado período. Depois disso, é preciso fazer uma nova aquisição. Um exemplo desse sistema é a compra regular de antivírus. “Há ainda o processo em que o fornecedor disponibiliza atualizações para o consumidor sem custos adicionais. A Microsoft oferece essa prática no Windows. Porém, a atualização não ocorre gratuitamente quando é lançado um novo produto”, revela.

Para o professor Raoni Rajao, se uma empresa tiver de decidir entre resultados financeiros e o meio ambiente, sempre escolherá a primeira opção
Para o professor Raoni Rajao, se uma empresa tiver de decidir entre resultados financeiros e o meio ambiente, sempre escolherá a primeira opção
Complexidade

Ele destaca a recente adoção pelo mercado de cloud computing. Em linhas gerais, nesse processo o consumidor compra um serviço e o software fica disponível na internet, como se fosse um aluguel. “É um modelo que está em evolução e que altera bastante os atuais de comercialização de softwares”, explica, ressaltando que o mercado é complexo e com muitas inovações.

Entretanto, de acordo com ele, há nesse mercado práticas bem questionáveis e que poderiam ser associadas a obsolescência programada. É o caso do lançamento de produtos inacabados para ocupar espaço; a comercialização de produtos sem todas as suas funcionalidades e informações ao consumidor para se inteirar sobre as funcionalidades das novas versões; atrelamento do funcionamento do software a um determinado modelo de equipamento (exemplo disso é o que ocorre com celulares que utilizam versões do Android, o que pode levar a troca de aparelhos para ter novas funcionalidades); ou associação da compra de um produto à compra de um contrato de atualização e suporte, que obriga o consumidor a pagar a cada cinco anos, em média, o valor de um novo software.

 “Os modelos de comercialização foram construídos numa época em que não existia internet, mobilidade e a tecnologia não tinha a abrangência atual. Vivemos uma nova sociedade, uma era digital da informação e da total conectividade”, enfatiza. O mercado de software, para ele, está chegando a um momento de maturidade e de novas possibilidades. “Um momento ideal para rever paradigmas e buscar um novo modelo que atenda essa nova sociedade. O planeta vai agradecer muito”, complementa.

Entre as lógicas ambiental e econômica
O professor adjunto de estudos sociais da ciência e da tecnologia – engenharia de produção da UFMG Raoni Rajão diz que as grandes empresas já perceberam que não é mais possível ignorar a atual onda da sustentabilidade. “O esverdeamento corporativo, que começou como uma forma de se diferenciar, hoje é visto por muitos como uma necessidade para se manter no mercado”, afirma ele, enfatizando que é possível reduzir o impacto ambiental sem interferir nos negócios e nos lucros. Porém, em muitos casos o conflito entre a lógica ambiental e a econômica é inevitável. Por mais que uma empresa de computadores consiga substituir alguns componentes e diminuir a periculosidade de seus produtos ao serem descartados, o lançamento frequente de modelos e o aumento das vendas gera inevitavelmente centenas de toneladas de lixo eletrônico de difícil processamento e reciclagem. “O pior é que nas ocasiões em que a empresa for obrigada a escolher entre salvar os resultados financeiros e o meio ambiente, a primeira opção vai prevalecer.”

Vice-presidente da Sucesu-MG, Marcelo Siffert diz que atuais modelos de comercialização foram construídos quando nem havia internet, o que os torna obsoletos
Vice-presidente da Sucesu-MG, Marcelo Siffert diz que atuais modelos de comercialização foram construídos quando nem havia internet, o que os torna obsoletos
Práticas da indústria

Para ele, a obsolescência programada no setor da alta tecnologia é das estratégias organizacionais contemporâneas que melhor ilustram a superioridade da lógica econômica sobre a ambiental. As últimas décadas foram marcadas por uma velocidade crescente entre o desenvolvimento de novas tecnologias e o lançamento de produtos. “Por trás disso podemos encontrar, além da dedicação de cientistas e visionários, uma política industrial de grande impacto ambiental, que cria produtos com uma vida útil limitada, seja pela pouca durabilidade, seja pela velocidade com que outros mais avançados são lançados”, afirma.

Raoni Rajão diz que é possível perceber a influência da obsolescência programada por meio de duas práticas atualmente difundidas na indústria. A primeira parte de uma lógica simples: produtos com vida útil mais longa significa menor volume de vendas. Para evitar isso, são criados designs com componentes de vida útil curta e sem abrir possibilidades de substituições a preços viáveis. “Essa estratégia pode ser vista, por exemplo, na bateria do iPhone, que como toda bateria recarregável tem vida útil de alguns anos. “O problema é que enquanto as baterias de tocadores de música portáteis e celulares podiam ser facilmente trocadas, a do iPhone é inacessível ao usuário e não é vendida separadamente pela Apple no Brasil. Sendo assim, o consumidor é obrigado a trocar o seu aparelho praticamente a cada dois anos”, informa.

A outra forma em que se pode perceber a presença da estratégia da obsolescência programada é na frequência com que são lançados novos modelos e na escalada de funcionalidades que eles oferecem. “Como explica George Frederick, um dos criadores desse conceito, as empresas devem não só satisfazer as necessidades de seus clientes ao oferecer artigos que eles ainda não têm como também atribuir um sentido de modernidade a eles. Sendo assim, mesmo que o cliente já tenha um aparelho, ele vai se sentir na obrigação de substitui-lo por um modelo mais novo e avançado”, explica.

No caso do iPhone, segundo ele, é possível notar claramente essa prática. A câmera digital das primeiras versões do aparelho vinha com apenas 2MP, uma resolução muito abaixo das dos smartphones concorrentes. Somente a partir do iPhone 4S, lançado no fim do ano passado, que o equipamento alcançou 8MP, resolução semelhante à dos smartphones de ponta. “Assim, a Apple incentivou duas ondas de consumo de seus produtos. A primeira, relativa aos novos usuários de iPones; a segunda, aos usuários que buscam atualizar seus celulares com recursos atualizados”, afirma.

Saiba mais - Círculo vicioso
A estratégia da substituição pode ser vista ainda na parceria entre os desenvolvedores de sistemas operacionais comerciais e os fabricantes de hardware. Com as novas funcionalidades oferecidas pela versão mais atual do sistema operacional chegam também maiores exigências de hardware. Como consequência disso, o usuário que decidir fazer o upgrade do software vai se ver diante de um computador mais lento, o que o levará a fazer também a aquisição de um novo hardware. Ao mesmo tempo, os novos conjuntos de hardware apresentam novas performances e, assim, pedem versões mais recentes dos sistemas operacionais para serem bem aproveitadas. “Trata-se de um círculo vicioso que gera uma demanda dupla, na qual novos softwares precisam de novos conjuntos de hardware e vice-versa”, revela Raoni Rajão.


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