Um Chile cheio de questionamentos sobre o passado e ávido por mudanças marca o quadragésimo aniversário do golpe militar que depôs o presidente socialista Salvador Allende e mergulhou o país andino em uma ditadura que durou 17 anos e matou mais de 3,2 mil pessoas. Manifestações espalharam-se pelas ruas do país na última semana e devem aumentar na quarta-feira, quando a tomada de poder liderado por Augusto Pinochet completará quatro décadas. Segundo especialistas, cresce o clamor dos chilenos para conhecer toda a verdade sobre o regime opressor e poder, enfim, cicatrizar as feridas.
"Hoje, nós vemos outro país. Um país que resolveu sair para protestar por diferentes demandas (...), com um maior grau de consciência e uma definição clara de que se tem de mudar tudo o que foi herdado da ditadura. Isso nos faz enfrentar os 40 anos de uma maneira completamente diferente", avalia a presidente do Grupo de Familiares de Detidos-Desaparecidos, Lorena Pizarro.
Para o sociólogo Alberto Mayol, autor do livro El derrumbe del modelo (O colapso do modelo), a herança de Pinochet está em xeque. "Essa comemoração nos encontra no final de um ciclo político que nasceu na ditadura, continuou na transição e que, hoje, objetivamente, está acabando", analisa. Quase sempre marcados por embates com a polícia, os protestos regulares organizados por estudantes chilenos são uma prova desse movimento. Ao som de "E vai cair... e vai cair... a educação de Pinochet!", a sociedade civil chilena exige mudanças em um sistema econômico situado no extremo liberal, avalia Mayol.
NAS URNAS O resultado da disputa da próxima eleição presidencial, marcada para 17 de novembro, pode sacramentar esse movimento de mudança. A candidata socialista e ex-presidente Michelle Bachelet segue em disparada nas pesquisas defendendo uma profunda reforma política, o que incluiria a elaboração de uma nova Constituição, deixando para trás a que foi imposta por Pinochet em 1980. Por outro lado, a principal adversária de Bachelet e representante da direita, Evelyn Matthei, pretende manter e aprimorar o modelo a fim de superar as desigualdades.
Por uma ironia do destino, a campanha eleitoral coloca em campos opostos duas mulheres que compartilharam a infância, mas que tomaram diferentes caminhos após o fatídico 11 de setembro. Os pais de Bachelet e Matthei eram amigos e generais da Força Aérea. Enquanto Alberto Bachelet foi detido no dia do golpe por se manter leal a Allende, morrendo meses depois vítima de torturas, Fernando Matthei integrou a junta militar de Pinochet e fez parte do círculo íntimo do ex-ditador.
MEMÓRIA
Regime de atrocidades
A ditadura instalada no Chile após o golpe militar de 1973 foi marcada por atrocidades que até hoje assombram o país andino. A estrutura de opressão montada pelo general Augusto Pinochet incluiu o uso de armas químicas, a formação de alianças com nazistas e até uma explosão de um carro-bomba a poucos quarteirões da Casa Branca, matando, no EUA, em 1976, o ex-chanceler chileno Orlando Letelier. Ao longo dos 17 anos de ditadura, 3,2 mil pessoas morreram e pelo menos 38 mil foram torturadas. Pinochet construiu um campo de concentração, semelhante aos usados pelos nazistas, em uma remota ilha no Estreito de Magalhães, a maior passagem natural entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Além de resistir a temperaturas abaixo de zero, os prisioneiros eram submetidos a trabalhos forçados e dormiam em celas superlotadas. A ditador recorreu a armas químicas, como o gás sarin, em
conflitos com países
vizinhos e opositores.