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Estado de Minas

Doentes enfrentam calvário por falta de medicamentos nas farmácias públicas

Pacientes crônicos são obrigados a mover ações judiciais e, nos casos mais graves, ficam internados por longos períodos por não terem acesso aos remédios


postado em 01/07/2017 06:00 / atualizado em 01/07/2017 09:44

Raquel e o filho Ramon: interrupção do tratamento por falta do remédio, que custa R$ 27,5 mil a caixa, complicou a doença(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Raquel e o filho Ramon: interrupção do tratamento por falta do remédio, que custa R$ 27,5 mil a caixa, complicou a doença (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Pacientes que dependem de remédios para viver estão enfrentando mais uma provação, desta vez, ligada à burocracia e ao descaso. Medicamentos de alta complexidade e valores na casa de milhares de reais estão em falta há meses nas farmácias públicas de Minas Gerais. Nem substâncias destinadas ao tratamento de doenças bem menos raras e com preços mais abordáveis escapam. Ações judiciais e peregrinações sem fim de mães em busca dos únicos elementos capazes de aliviar o sofrimento dos filhos se misturam à longa espera e a promessas de regularização. Nos casos mais graves, complicações pela falta da medicação têm como resultado internações hospitalares por longo período.

Um desses medicamentos é o Zavesca (Miglustat), usado no tratamento da Niemann-Pick Tipo C (NP-C). Doença progressiva e neurodegenerativa, a NP-C se caracteriza por ser uma condição genética hereditária rara, na qual as pessoas não conseguem metabolizar corretamente o colesterol e outros lipídios (moléculas gordurosas) dentro de suas células. Como resultado, quantidades nocivas de colesterol se acumulam no fígado e no baço, e quantidades excessivas de outros lipídios se acumulam no cérebro. O Zavesca é o único medicamento disponível no Brasil para tratar a doença e sem ele o paciente corre risco de morte.

De acordo com a Associação Niemann-Pick Brasil (ANPB), desde outubro, a Secretaria de Estado de Saúde (SES) não distribui a medicação. A falta do remédio provoca a degeneração do sistema nervoso e grave comprometimento neurológico, afetando principalmente a fala e os movimentos. Pela tabela da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cmed), às secretarias estaduais e municipais e ao Ministério da Saúde ele é vendido ao preço máximo de R$ 14.422,31. Nas farmácias, custa R$ 27,5 mil. No Brasil, a NP-C acomete 94 pessoas, das quais seis em Minas Gerais. Quarenta casos estão na Justiça.

Entre esses pacientes está o adolescente Ramon Von Rondove Roque Dias, de 18 anos, morador do Bairro Letícia, em Venda Nova. Já em 2010, ele dava alguns sinais na escola, por não conseguir acompanhar o ritmo dos colegas, e em casa, ao vomitar constantemente. Em 2012, a mãe, a recepcionista Raquel Von Rondove, de 46, começou a investigar o problema e, há três anos, o diagnóstico foi cravado. Em 2014, o garoto começou a tomar o Zavesca, mas desde outubro do ano passado não tem mais acesso a ele. “São duas caixas por mês. No início de outubro peguei uma, me pediram para voltar 15 dias depois para a segunda e já não consegui mais”, conta Raquel.

A falta do remédio gerou complicações e levou Ramon a ficar internado um mês e dois dias no hospital São Lucas, de onde saiu no último dia 6. Ele foi acometido por uma pneumonia por engasgos com alimentos que pararam no pulmão. Agora, usa sonda para se alimentar. O jovem, de 1,82 metro de altura, pesa, atualmente, 45 quilos. A mãe teve de deixar o emprego para se dedicar aos cuidados com o filho. E não bastassem todas os problemas de saúde, que envolvem ainda a compra nas farmácias convencionais de outros remédios de uso diário, Raquel ainda vai enfrentar na Justiça o motorista Ramon Roque Dias, que os abandonou sem qualquer assistência ao filho. A expectativa de ter novamente o Zavesca teve novo capítulo de frustração esta semana. “Estava marcado para chegar dia 14, mas um dia antes recebi uma ligação dizendo que não havia chegado. Pediram para ligar dia 23, mas ressaltaram que não há previsão de ter a medicação”, conta.

Calvário
Moradora de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a serviços gerais Rosângela Procópio Carvalho, de 33 anos, enfrenta há sete anos uma luta ao lado do filho Iago Linhares Carvalho Lopes, de 15, também diagnosticado com a NP-C. A doença só foi descoberta quando o garoto tinha 8 anos, época em que ele começou a ter na escola regressão da fala, coordenação motora e aprendizagem. Em tratamento no Hospital Infantil João Paulo II, na Área Hospitalar, em BH, o diagnóstico veio depois de uma biópsia da pele. “A Justiça demorou quase dois anos para deferir a sentença Nesse período todo, meu filho ficou sem o remédio”, conta.

Marli e Miguel: criança está sem a dose de hormônio mensal de que precisa e a mãe ainda enfrenta dificuldade para manter o tratamento dele com anticonvulsivante(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Marli e Miguel: criança está sem a dose de hormônio mensal de que precisa e a mãe ainda enfrenta dificuldade para manter o tratamento dele com anticonvulsivante (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Ano passado, Iago ficou novamente cinco meses sem o medicamento. A ANPB entrou com ação contra a União, pedindo o remédio ao Ministério da Saúde. A quantidade recebida dá para seis meses e termina em agosto. “A secretaria (SES) fala que está em falta e não há previsão. Sem o remédio, Iago fica com a fala e a coordenação comprometidas. Ele tem também um quadro de pneumonia frequente que piora ainda mais. Ele precisa de duas caixas que dão para um mês, ou seja, eu teria que gastar R$ 55 mil a cada vez”, relata. “É muito difícil ver a situação de um filho só complicando e você não poder fazer nada. A expectativa é de piora. Sem o remédio não tem outra solução.”

A presidente da Associação Niemann-Pick Brasil (ANPB), Rejane Machado, mãe de uma jovem de 20 anos que também tem a doença conta que a situação piorou nos últimos tempos. “Antes, pressionávamos e o resultado vinha, por causa do medo de aparecer na mídia. Agora, nada mais comove e os governos têm a desculpa perfeita, que é falta de dinheiro para comprar os medicamentos. A situação vem se agravando em vários lugares do país”, relata. Minas registra o período mais longo sem o remédio (oito meses), de acordo com a associação. Há casos de interrupção no fornecimento também em Pernambuco, São Paulo e Ceará, de dois meses para cá. “Além de vivermos uma luta com a doença, o governo, que poderia suavizar um pouco esse sofrimento, nos faz viver ainda mais a incerteza, a insegurança, o descaso e o desrespeito.”

Há 15 dias, uma menina de 8 anos morreu em Pernambuco pela falta do remédio. “A família se virou como pôde por um período, mães da associação contribuíram como puderam e houve doações, mas chegou um momento que não tinha mais de onde tirar o dinheiro. O tratamento foi interrompido e a Maria Paula não resistiu”, conta Rejane. Atualmente, o único sem acesso ao remédio é o mineiro Ramon, que assim como Iago, recebe o medicamento pela SES. Os outros têm o processo vinculado à União – por lei, o pedido de remédios para doenças raras só é feito via judicial, deixando o calvário ainda mais moroso.

De acordo com Rejane, não tem havido problemas com o fornecimento via Ministério da Saúde, por isso, o setor jurídico da ANPB estuda transferir todas as ações para a esfera federal. “Mais triste é que a gente cobra, a secretaria responde que está em processo de compra, mas onde? Precisa de uma resposta e rápida. A doença não espera, ela é progressiva e gravíssima. Não mata da noite para o dia. A criança vai padecendo lentamente, até chegar num estado vegetativo. O remédio freia a doença, estabiliza no nível que está e permite ao paciente viver com qualidade de vida.”


Saiba mais
Teste pela visão

A NP-C pode se manifestar em qualquer idade, afetando bebês, crianças, adolescentes e adultos. Segundo especialistas, a sobrevida média estimada em pacientes, depois do diagnóstico, é de 16 anos, e sem tratamento específico essa sobrevida é bastante reduzida. O exame conhecido como avaliação do movimento ocular, capaz de detectar a paralisia do olhar vertical, é um das maneiras de diagnosticar. Basta pegar um objeto ou o dedo indicador e movimentar na vertical (para cima e para baixo). A pessoa a ser examinada deve acompanhar o objeto, com o olhar, e fazer o movimento, sem mexer a cabeça. Caso não seja capaz, fique alerta e procure um especialista para exames mais completos. Além da paralisia do olhar vertical, o paciente pode apresentar dificuldades em engolir, fala arrastada e irregular, desequilíbrio e falta de controle muscular, quedas frequentes, declínio intelectual progressivo, entre outros sintomas.


O impossível
Pelos filhos, mães movem céus e terras. É o caso da advogada Marli Antunes de Lima, de 49 anos, moradora de Belo Horizonte, que faz o impossível para garantir o bem-estar e a não interrupção dos medicamentos de uso contínuo do menino Miguel de Sousa Lima, de 7, para tratar as consequências de um tumor no cérebro. Ele precisa de uma injeção de hormônio que custa R$ 600 e não se encontra disponível na farmácia do estado. No município, a briga é para o fornecimento de um anticonvulsivante, também em falta.

O menino toma a injeção de Leuprorrelina mensalmente desde 1 ano e 7 meses de vida. A última dose que recebeu foi em abril. Foram várias tentativas, reclamações e ligações até uma boa notícia, há 15 dias, de que a medicação havia chegado. Mas, ao ir à farmácia do estado para buscá-la, saiu de mãos vazias. Pela Prefeitura de BH, a batalha é pelo anticonvulsivante Oxcarbazepina (Trileptal), que ela deveria pegar no Centro de Saúde Nossa Senhora Aparecida, no Bairro São Lucas, Região Centro-Sul da capital. Mas, desde novembro, o remédio está em falta. Miguel toma quatro comprimidos por dia e, a caixa com 20, suficiente para apenas cinco dias, custa R$ 90. As 120 drágeas mensais saem ao preço de R$ 540, que somado às terapias que o garoto faz, pesam no bolso da mãe.

“Quando tem no posto, nunca consigo os 120 de que ela precisa. Em março, havia um movimento na Praça Sete (no Centro) sobre o assunto, fiz uma reclamação e apareceu uma caixa quase vencendo. Não me dão um documento formalizando a falta do medicamento. No telefone 156, os atendentes não sabem explicar, e na Ouvidoria, de nada adiantam as reclamações. Tenho cartão de crédito e pago de três vezes. Mas e quem não tem condição alguma?”, questiona. “O que justifica o governo não comprar essa medicação? É uso constante. O Miguel terá que tomar pelo resto da vida. O problema é oferecer um serviço e não cumprir. Se falasse que não pode fornecer, não criaríamos expectativas”, diz.

Marli está disposta a ajuizar uma ação judicial, caso o anticonvulsivante não esteja disponível nos próximos dias. Mas desanima com o trâmite: “Eles cumprem um mês e no seguinte temos que acionar a Justiça de novo. Evito fazer isso, porque sei que será mais um problema”.

Respostas
Por meio de nota, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Saúde (SES) informou que o medicamento “Zavesca” (Miglustat), na listagem dos remédios para doenças raras, padronizados pelo Ministério da Saúde, foi incorporado para o tratamento de Doença de Gaucher. Nesse caso, pode ser solicitado por via administrativa, pelo programa Farmácia de Todos. Mas, para tratar a Doença de Niemann-Pick tipo C (NP-C), a solicitação do Zavesca se dá por meio de via judicial, por ele não ser um medicamento indicado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para tratar a doença.

A doença, progressiva e neurodegenerativa, acomete seis pacientes em Minas Gerais, dos quais dois, Ramon Von Rondove, de 18 anos, e o Iago Linhares Lopes, de 15, dependem do fornecimento via estado. “Sendo assim, informamos que o medicamento se encontra na fase do processo de compra”, diz o texto. A previsão era de que o Pregão Eletrônico 132112-71-2017 fosse feito na semana passada. No pregão, “consta o medicamento Miglustat 100mg (Zavesca), para atendimento a diversos pacientes, dentre eles, os pacientes Ramon Von Rondove e o Iago Linhares Lopes”, afirma a nota.

A SES informou ainda que, atualmente, o edital está em análise pelo setor jurídico e, caso o parecer seja favorável, será então publicada a abertura da sessão para lances. Sobre a injeção Leuprorrelina, acrescentou que uma distribuição complementar do medicamento para a Farmácia Regional Belo Horizonte estava em andamento e a previsão era de que até ontem estivesse disponível para dispensação.

A Secretaria Municipal de Saúde, também por meio de nota, disse que já começou um novo processo de compra para atender os pedidos em relação à oxcarbazepina. “O fornecedor contratado responsável pela entrega já foi penalizado pela SMSA devido ao atraso no fornecimento”, afirma. Acrescentou que a pasta oferece outros anticonvulsivantes, dentre eles o clobazam, carbamazepina e ácido valproico. “Cabe ao médico verificar a possibilidade de substituição terapêutica, e a avaliação deve ser feita caso a caso”, conclui a nota.


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