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Estado de Minas LUTO NAS ARTES

Morre Ronaldo Brandão, ator, diretor, crítico de cinema, professor e intelectual

Corpo do mineiro será cremado na quinta-feira no Parque da Colina, em Belo Horizonte


postado em 02/03/2016 19:48 / atualizado em 02/03/2016 23:26

Ronaldo Brandão formou gerações de atores em Minas(foto: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press)
Ronaldo Brandão formou gerações de atores em Minas (foto: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press)
Minas Gerais e o Brasil perderam nesta quarta-feira um intelectual brilhante. Entre muitos que despontaram em Minas, era um dos grandes. Ronaldo Brandão morreu aos 76 anos, vítima de complicações cardíacas e AVC. Apagou-se uma das mais incansáveis e provocativas chamas da cultura mineira. O velório será realizado nesta quinta-feira, das 9h às 16h, no Cemitério Parque da Colina, onde o corpo será cremado.

Com aquele corpo “de cinturinha de formiga”, foram-se as atitudes e os gestos exagerados, a enciclopédica memória cinematográfica, o diretor e ator de teatro irreverente e um dos grandes críticos de cinema que este país já teve o prazer de ler.

Ronaldo foi um sujeito cuja inquietude logo já não coube na sua Ponte Nova natal. Aos 12 anos, foi aventurar-se na capital. Filho de farmacêutico e professora, dizia que sua infância foi infeliz. Partiu para o mundo. Chegou a Belo Horizonte de trem e ficou impressionado. A capacidade de análise, a sensibilidade e a curiosidade o levaram ao jornalismo, brilhando em vários veículos. Em 1963, ainda na faculdade, já “entrou pela porta da frente”, ao se tornar crítico de cinema da sucursal do carioca da Última Hora. Depois, assinou coluna no Estado de Minas.

Apaixonado pelas imagens projetadas nas telas, acompanhava toda a produção e sabia na ponta da língua fichas técnicas dos clássicos de Hollywood. Diretor do 1º Festival de Cinema Brasileiro de Belo Horizonte, nos anos 1960, foi também um dos editores de Claquete, jornal de cinema, e um dos atuantes membros do Centro de Estudos Cinematográficos (CEC). Leitores de Folha de Minas, Diário de Minas, O Sol, Estado de Minas, Jornal da Tarde e Veja que o acompanharam, nesses veículos ou na TV Itacolomi, certamente percebiam a acuidade com a qual resenhava os lançamentos do cinema. “Nunca fui demitido, sempre pedi demissão”, contou-me, certa vez.

Depois de seis anos em São Paulo – “onde se ganha muito dinheiro, mas gasta-se tudo em táxi e pizza” –, retornou a Belo Horizonte. Entregou-se de corpo e alma ao teatro, dirigiu dezenas de peças e encarou autores de peso: Camus, Brecht, Arrabal e Nelson Rodrigues – que ele trouxe, em 1973, a Belo Horizonte para assistir a Beijo no asfalto sob sua direção, no Teatro da Imprensa Oficial. Dirigiu atores que se consagrariam – Marco Nanini, Julia Lemmertz, José Mayer e toda uma geração de atores mineiros.

Personagem de si mesmo e sempre elegante, Ronaldo foi retratado no cinema em mais de uma dezena de filmes como ator, encarnando as mais variadas figuras, ou como ele próprio, em documentário de Patrícia Moran. Sua última performance está no documentário Ronaldo, por favor, dirigido por Vera Fajardo (mulher de José Mayer). "Um filme afetivo", segundo Luiz Otávio Brandão, irmão do artista. "Apaga-se a última estrela de uma geração muito especial", afirmou Luiz Otávio, nesta quarta-feira.

O irmão lembrou o papel de Ronaldo no Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), que foi presidido por ele. Craque da bola, Sócrates produziu uma peça do mineiro: Perfume de camélia.

Ao longo dos anos, sua casa foi se transformando em verdadeiro arquivo. Cartazes, recortes de jornal – cuidadosamente agrupados em pastas por nomes de atores e diretores –, e muitos, muitos filmes, entre registros de VHS gravados da TV a DVDs. Orgulhava-se de contar ter assistido a mais de 40 mil longas-metragens. “Hollywood está dentro do meu quarto, são minhas fantasias, minhas lembranças eróticas”, dizia.

Intelectual culto e exigente, Ronaldo era ranzinza ao constatar pouca cultura em seu interlocutor. Sentado nos bares da Savassi, olhava para a juventude que desfilava à sua frente e, entre o desejo e o desdém, alfinetava: “Coitadinhos. Nunca leram o grande Machado, Ítalo Svevo, Proust. Nunca se deliciaram com Nelson Rodrigues”. A poesia, Ronaldo amava com fervor. Escreveu vários poemas de boa lavra, mas era, sobretudo um grande orador. Recitava onde estivesse. Com interpretação única, discorria enormes líricas de autores consagrados e de amigos de copo.

Ronaldo morreu, mas soube aproveitar a vida. Fez de tudo, sem pudores. Quebrou tabus e arcou com as consequências de ser e estar à frente de seu tempo. Aprontou e militou contra a ditadura. Sua vaidade assumida, assim como sua homossexualidade, não era grande o suficiente para impedi-lo de compartilhar sua sabedoria com qualquer um que lhe solicitasse. Apesar do rigor, foi sempre generoso e afetuoso com todos à sua volta. Mas, como homem de rara e vasta cultura, tinha a perfeita consciência da pequenez do ser humano. “Os homens são pessoas solitárias, enquanto a mulher é um ser completo. O homem é uma pessoa que nunca está satisfeita, é um eterno Sísifo rolando a pedra morro acima.”

Ronaldo Brandão deixa cinco irmãos, vários sobrinhos e dezenas de amigos.

DEPOIMENTO
Um cara generoso

Ronaldo Brandão era, para mim, uma espécie de tia. Daquelas que a gente admira e escuta os casos que a família tem pudor de revelar. Ele não tinha vergonhas e contava histórias incríveis sobre meus pais. Ronaldo dizia que era a mãe da minha mãe. Depois, chamei-o de vó e ele não gostou. Tinha então uns 60 anos, mas era demasiadamente jovem para ser avó.

Conheci Ronaldo antes de ser concebido. Ele me contou que emprestava seu apartamento na Rua da Bahia para meus pais, então namorados, se encontrarem às escondidas ao som de Led Zeppelin. Conferi a informação com os dois e soube, entre risos, que era verdade. Alcoviteiro, chegou a afirmar que eu tinha sido concebido em sua cama. Mas chequei com os responsáveis e, desta vez, a informação não procedia. Era apenas um arroubo afetivo e exagerado de ator.

Algumas vezes, visitava-o em seu “escritório”, algum bar na Savassi que mudava de endereço de tempos em tempos. Nunca me cansei de ouvir sua erudição, pois aprendia sobre filmes, livros e me encantava com as histórias loucas de uma Belo Horizonte divertida. Acabamos nos tornando amigos e ele sempre foi generoso. Era um sujeito ímpar, de frases prontas, francas e lapidares. Vou guardar a imagem de Ronaldo, de óculos redondos vermelhos, no Café Urrubu, na Rua Carangola, recitando poesia de pé sobre a cadeira e, como sempre, brilhando. Foi-se uma estrela. (PPF)


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