De norte a sul, uma metrópole de belezas e mazelas. Belo Horizonte é terra de contrastes, com o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) variável entre 0,5 e 0,9. O número 1 é o topo da tabela que busca mensurar vida longa e saudável, acesso ao conhecimento e padrão de vida – saúde, educação e renda. Abismo econômico entre classes à parte, gerações de artistas mineiros ajudam a construir a diversidade cultural e transformam a vida de jovens e adultos dos barracos das favelas às mansões da Cidade Jardim.
Aos 80 anos, dona de fôlego e doçura de menina, Berenice fala sobre a criação da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais e da sede, casa para preparação e concertos, no Bairro Santo Agostinho. “Espero que o novo governo do estado não se esqueça que, com a Casa da Orquestra, vamos ter mais concertos e mais oportunidades para o público e para os artistas”, ressalta.
As lembranças pululam na memória de quem nasceu em berço de respeito à arte. Menininha, aos 3 anos, ela teve as primeiras aulas do piano para toda a vida. Guignard, que fez fama por pintar as paisagens mineiras e deu nome a importante escola de BH, era frequentador da casa da família de Berenice. A pianista relembra a importância do maestro Sérgio Magnani para a cidade; o olhar modernista de JK e o Cine Teatro Glória – palco em que conheceu, entre outros atores, Procópio Ferreira e Dulcina de Moraes.
Defensora e entusiasta dos estudantes de música, Berenice espera uma descentralização ainda maior da cultura, além das nove regionais. “Falta intercâmbio. Não só em Belo Horizonte. No país. É preciso mais oportunidades para os estudantes. Estamos muito empenhados em ampliar a atuação da fundação”, diz. A pianista lamenta que muita gente ainda não tenha acesso à música erudita na cidade. “Há uma carência enorme de possibilidades para que os jovens possam produzir fora do âmbito da escola”, avalia.
MESTRE DO TEATRO Contemporâneo de Berenice Menegale, Elvécio Guimarães, nas artes cênicas, trilhou caminho parecido de imersão à cultura de Belo Horizonte. Ambos tiveram até passagem pelos gabinetes do poder público. Sem falar no investimento pessoal na formação de novos talentos. O Elvécio professor é chamado de mestre por pelo menos três gerações de artistas de Minas Gerais.
Para o ator, Belo Horizonte, aos 117 anos, perdeu muito de seus encantos. “Pelo menos para mim, que sou romântico. Não temos mais os boêmios, as serenatas e o que era bucólico ficou perigoso. Andar à noite? Nem pensar”, lamenta. Elvécio revela ter muitas saudades do footing da Avenida Afonso Pena, quando a alta sociedade da cidade se encontrava nos finais de tarde.
“Também tenho muitas saudades da Feira de Amostras, onde é a rodoviária. Saudade da Rádio Inconfidência com suas radionovelas e da TV Itacolomi. No Edifício Acaiaca era onde a gente desfilava a nossa beleza”, diverte-se. Nos anos 1950, Elvécio foi um dos atores que ajudaram a construir a história da telenovela brasileira. Teve oportunidades no Rio de Janeiro, mas não conseguiu deixar a terra natal.
“Satisfeito eu não estou. Mas não me entreguei. Tenho 81 anos, enfisema, e não entrego os pontos”, diz. O ator, diretor, professor e dramaturgo não esconde o dissabor com a falta de investimento em teledramaturgia em Belo Horizonte. Não consegue compreender, com tantos bons profissionais de TV na cidade – atores e técnicos – a falta de produção local de conteúdo. Para Elvécio, a cidade tem muito para avançar no que se refere à cultura.
Incansável Ainda que com apenas um terço da capacidade pulmonar, o ator trabalha no texto de A joalheria, que pretende levar aos palcos no próximo ano. De repertório, Nelson sem pecado, em parceria com o ator e produtor Guilherme Ruggio. O trabalho, inspirado em Nelson Rodrigues, é um dos destaques da próxima Campanha de Popularização do Teatro e da Dança de Minas Gerais.
Engajamento nas ruas
A grafiteira Tainá Lima, a Criola, é a voz expressa nos muros. Ela já escreveu seu nome até em Copacabana. Mas não está no Rio de Janeiro a obra mais significativa da artista de 24 anos. Está em Lourdes, na Rua Timbiras, 1.645, na Região Centro-Sul de BH. O painel de 49 metros quadrados, com o qual ela concluiu a graduação em moda pela Universidade Federal de Minas Gerais, é destaque na muralha em construção.
Modelo dos 13 aos 20 anos, Criola encontrou no grafite força e voz de contraposição no ambiente urbano. “É um trabalho político e social. Pinto para contrapor à publicidade nas ruas. É uma manifestação. Na moda, fui contratada muitas vezes porque era a ‘negra da pele mais clara’ e isso sempre me incomodou”, diz. No corpo, a roupa desenhada à mão é estampa de parte da obra no paredão.
Criola está também em outros pontos de Belo Horizonte. Alguns de seus grafites estão no Bairro Taquaril, no morro do São Lucas e na Praça Floriano Peixoto. Ela já soma mais de 10 obras espalhadas pela capital. Recém-formada, a grafiteira revela passar por “momento de introspecção”. Sonha trabalhar com Ronaldo Fraga e quer concluir a obra iniciada na Rua Timbiras, nas costas do Colégio Imaculada Conceição.
Henry Pablo é outro poeta das ruas. Morador do Bairro Guarani, na Região Norte, Henry se prepara para lançar Noithem, com 274 poemas distribuídos em sete capítulos. “Em Noithem, a ficção esbarra na realidade e a realidade tempera a ficção com a acidez da vida cotidiana. O livro serve como um retrato de alguns dos males da sociedade contemporânea, como o individualismo, a solidão, a angústia existencial e o narcisismo”, revela.
Henry não usa o spray – como Criola – para a manifestação social e política. Faz da pena sua principal ferramenta de protesto e opinião. Também ator e performer, o multiartista faz uso do corpo para compor imagens e dar movimento aos textos. Assíduo em saraus de praças e ruas, Henry é integrante de vários coletivos de arte em Belo Horizonte.
Para o poeta, as pessoas estão aprendendo a gostar da cidade e estão ocupando com propriedade os espaços públicos. “Cresci ouvindo que em Belo Horizonte não há nada para se fazer, e isso está mudando”, observa. Henry avalia que BH não é mais lugar de passagem. “Vários pontos públicos da cidade já são espaço de destino e permanência”, conclui. (JFC)