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Estado de Minas

Lança-perfume que ganhou os salões no início do século passado ainda traz lembranças

Foi no reinado de Momo de 1904 que a novidade entrou na atmosfera dos salões


postado em 01/03/2014 06:00 / atualizado em 01/03/2014 07:50

Fantasias de marinheiro marcaram uma das épocas mais ricas do carnaval de Belo Horizonte, lotando os salões do Iate Clube, na Região da Pampulha (foto: Arquivo EM - 3/3/1954 )
Fantasias de marinheiro marcaram uma das épocas mais ricas do carnaval de Belo Horizonte, lotando os salões do Iate Clube, na Região da Pampulha (foto: Arquivo EM - 3/3/1954 )

Houve um tempo em que pairava no ar algo além de serpentinas, confetes e som ritmado das marchinhas de carnaval. Nos bailes elegantes, desfile de corsos e brincadeiras de rua, na capital ou interior, homens e mulheres fantasiados empunhavam tubos dourados e esguichavam um spray aromático no pescoço de quem passasse – de preferência, alguém que fosse desejado. Era delicioso, agradável e geladinho, afirma quem viveu as décadas áureas dos lança-perfumes fabricados por empresas como Rhodia, que gravou o nome na folia com o Rodouro; Pierrot e outras de prazerosas lembranças.

No fim dos anos 1970, a cantora e compositora Rita Lee eternizou o produto que “também dava barato” – para os mais jovens, é bom traduzir “barato” por efeito de droga – na famosa canção que dizia: “Lança menina, lança todo esse perfume/desbaratina, não dá pra ficar imune/ao teu amor, que tem cheiro de coisa maluca”. Mas, aí, era apenas referência à substância que saiu de cena em 1961, proibida pelo então presidente da República, Jânio Quadros (1917-1992). Alegando a interferência de “forças ocultas” – ou seria praga de algum fã do Rodouro? –, o chefe da nação renunciou naquele mesmo ano, dando início a uma série de reviravoltas no país. Mas aí já é outra história…

É bom voltar no tempo para entender melhor essa trajetória de euforia e alteração dos sentidos, mesmo que momentânea. Foi no reinado de Momo de 1904, portanto há 110 anos, que a novidade entrou na atmosfera dos salões e se incorporou rapidamente à farra em todas as cidades brasileiras. Belo Horizonte não ficou de fora, diz o historiador, documentarista e supervisor do site www.mapadafolia.com.br, Marcos Maia, que entrevistou várias pessoas: algumas que simplesmente lançavam o perfume no cangote de um folião ou foliona ou que cheiravam para ficar meio “doidão”.

Bloco As Camponesas Búlgaras, que saiu no carnaval de 1940, mostrava jovens com tubos da flagrância, proibida em 1961(foto: Acervo do Museu Histórico Abilio Barreto/divulgação)
Bloco As Camponesas Búlgaras, que saiu no carnaval de 1940, mostrava jovens com tubos da flagrância, proibida em 1961 (foto: Acervo do Museu Histórico Abilio Barreto/divulgação)

Maia colheu depoimento de todo tipo de gente, principalmente de quem viveu intensamente a gandaia colorida nas décadas de 1930 a 1950. Um homem que misturava o perfume à bebida para aumentar o efeito de ambos; outro que jurava des pés juntos que, com a proibição, a cocaína entrou de sola na folia; e ainda aquele certo de que o sumiço do Rodouro representou também o dos bons carnavais. Uma foto ilustra bem esse tempo de alegria, em que era proibido proibir: em 1940, o bloco As camponesas búlgaras posa candidamente para o fotógrafo e as moças carregam nas mãos instrumentos musicais, como pandeirinhos com fitas, e tubos de lança-perfume.

 

ELEMENTO DE CONQUISTA Segundo pesquisadores, o lança-perfume nacional começou a ser fabricado em 1922 pela unidade da empresa francesa Rhodia, em São Bernardo do Campo (SP). Sem qualquer censura, os anúncios ganhavam espaço nas revistas e jornais, como se fossem publicidade de um perfume qualquer. Com o passar do tempo, como ocorreram excessos pela inalação e mistura na bebida, o produto entrou na mira das autoridades, embora tivesse se tornado o símbolo do carnaval.

Devido ao registro de mortes ocasionadas pela droga manufaturada com solventes químicos à base de cloreto de etila, Jânio Quadros decidiu proibir o uso, que deixou saudade. O decorador Ildeu Koscky, morador do Bairro São Bento, na Região Centro-Sul de BH, não é bom de datas, então nem é bom perguntar em que ano ocorreu uma história que ele conta. Formado em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Koscky conta que o lança-perfume vinha numa caixa com três ou quatro unidades.

 

(foto: Paulo Filgueiras/EM - 17/1/2002)
(foto: Paulo Filgueiras/EM - 17/1/2002)
“Eu era menino, tinha 9 ou 10 anos, e lembro que meu pai comprava os tubos de metal dourado para a gente brincar. Nos corsos, as pessoas que estavam nesse desfile de carros ornamentados gostavam de usar o Rodouro para chamar a atenção sobre si mesmo. Na verdade, o produto era também um elemento de conquista”, afirma o decorador, explicando que nem sempre tudo são flores. Numa festa no Automóvel Clube, na Avenida Afonso Pena – “não me pergunte quando, por favor” –, uma cena ficou na história do carnaval de BH. “Um homem da sociedade inalou muito, caiu da balaustrada do clube e morreu na calçada”, conta resguardando a identidade do morto que era conhecido na sociedade belo-horizontina.

“O lança-perfume tinha um cheiro agradável, mas o efeito era muito rápido. Sempre fui muito medroso, jamais ultrapassei os limites, pois sabia dos perigos”, diz Ildeu Koscky, que não esquece os efeitos. “A sensação é que a gente estava flutuando. Parecia que estávamos voando, embora sem cair.” Entre uma prise (cheirada) e outra, seguiam os cordões pela cidade. “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim/Ah, meu bem, não faz assim comigo não…”

O arquiteto Ricardo Lanna também curtiu muitos carnavais e hoje prefere a tranquilidade de sua casa. Ele tem boas recordações do tempo de inocência, em que todo mundo se fantasiava, ia para as ruas de máscara a fim de se esbaldar. Em Jaguaraçu, na Região Leste, onde nasceu, Lanna revela que, na casa do avô, havia caixas de lança-perfume “escondidas”. Em Ouro Preto, para onde se mudou adolescente e cursou o ensino médio, ele conheceu o produto que “dava um barato, uma zoeira na cabeça”. Mas o clima era de muita alegria, nada de violência, só diversão.

O fim do lança-perfume deixou marcas na memória de quem gostava de brincar ouvindo marchinhas, cheirando a substância e dançando nas praças sob uma chuva de confete, “aquele pedacinho colorido de saudade”, conforme diz uma velha canção. Não foi à-toa que, num clima de saudosismo, Edu Lobo compôs No cordão da saideira : “Hoje não tem dança/não tem mais menina de trança/nem cheiro de lança no ar…”


NOVA VERSÃO
Na década de 1970, entrou no mercado brasileiro o lança-perfume da marca Universitário, fabricado na Argentina. Tempos da ditadura, as autoridades de olho e a garotada doida, em todos os sentidos, para provar daquela substância que os pais e avós tanto falavam. Era um vidro transparente, sem o glamour do Rodouro, mas que embalou muitos carnavais daqueles tempos.


LINHA DO TEMPO

1904 –O lança-perfume surge no carnaval do Rio de Janeiro (RJ) e logo é incorporado às festas do Reino de Momo em todo o país, principalmente nas batalhas de confete, corsos e bailes
1922 – É fabricado o primeiro lança-perfume nacional pela empresa francesa Rhodia, em São Bernardo do Campo (SP)
1931 – A demanda é tão grande, que fábrica de lança-perfume Pierrot publica anúncio pedindo desculpas aos clientes por não poder atendê-los
Década de 1940 – O baile de gala do Automóvel Clube começa a animar a noite de sábado em BH e o uso do lança perfume é uma das atrações
1942 – O baile do Minas Tênis Clube faz a sua estreia no reinado de Momo e tem cheiro de lança no ar
1961 – Por decreto do presidente da República, Jânio Quadros, o lança-perfume é proibido no Brasil
Década de 1970 – Em nova versão, num tubo de vidro, o lança- perfume é contrabandeado da Argentina


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