(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

Veja a íntegra da reportagem da extinta revista Realidade sobre Conceição do Mato Dentro

Publicada na edição número 2 de Realidade, em Maio de 1966, e reproduzida na coletânea Realidade Re-vista (editora Realejo). O desafio era mostrar a vida de uma cidade do interior: um estilo quase igual, em qualquer cidade. O repórter, um jovem de 24 anos, foi orientado a identificar e conhecer bem os personagens, tanto os óbvios, como prefeito e vereadores, mas, principalmente, os tipos populares e folclóricos, aquele que dão sabor à vida de uma pequena cidade. O desafio também era de texto: contar tudo isso sem cair em um relatório chato de nomes e atividades. A orientação permitia algumas liberdades, como juntar acontecimentos de dias diferentes em um só dia, o que seria impraticável hoje. O texto descreve o modo de vida de uma cidadezinha brasileira nos anos 60, antes da televisão, das estradas asfaltadas, do celular, da internet e até do próprio telefone.


postado em 06/04/2012 07:15 / atualizado em 06/04/2012 07:24

NOSSA CIDADE
Texto de José Carlos Marão

Foi mesmo um grande acontecimento, o daquele sábado, em Conceição do Mato Dentro. Comemoraram o juiz, o gerente do banco, o deputado local e ilustres visitantes, todos impecáveis em azul-marinho, sobriamente sentados nos sofás modernos e cadeiras coloniais do andar de cima da casa do prefeito. Bebiam guaraná com uísque que o velho Levi Ferreira de vez em quando trazia. Comemoraram outros cidadãos, no andar debaixo da mesma casa, bebendo sem fazer pose e cantando euforicamente músicas de carnaval entremeadas com o Hino da Cidade. Os jovens comemoraram no clube, pois apesar da quaresma houve até baile em que as moças disputaram os poucos rapazes da cidade e alguns vindos de fora especialmente para ver o grande evento.

Um dia antes, sexta-feira, sol nem bem nascido ainda, mestre Zé Júlio, como faz todos os dias, já estava na avenida, cujo nome é Bias Forte, mas poucos sabem. Ia o velho mestre seleiro, andando devagar, sempre de colete, paletó e uma bengala famosa, ver se o relógio da matriz funcionou direitinho durante a noite e justificar os 3 mil cruzeiros por mês de salário. Para depois trabalhar o dia inteirinho na tenda da selaria, como se não fosse casado 3 vezes e pai de 22 filhos.

Segundo o costume, quando passa pelo hotel e restaurante Cuiabá, o mestre bate com toda a força a ponta da bengala duas vezes no poste de ferro que quase acorda a cidade inteira. Foi para avisar Antonio Geraldo que eram exatamente 5 e meia da manhã. Antonio Geraldo é o dono do hotel e tem muito orgulho de levantar cedo, mas dificilmente ganha do mestre. Só que, nesse dia, ganhou. E fez o que sempre faz, quando já está de pé na hora do mestre passar – uma gargalhada, um pontapé na porta de aço do seu restaurante e um grito:
- Ah, véio, hoje levantei mais cedo. Não sabe que amanhã tem coisa importante na cidade e eu vou ter muito serviço?

Zé Júlio nem quis saber o que ia acontecer e foi cumprir suas funções de zelador do relógio da igreja. Deixou para trás Antonio Geraldo acordando os hóspedes que iam viajar, e Teófilo, o motorista do ônibus, já tratando de esquentar o motor da jardineira.

Teófilo nunca partiu para Belo Horizonte tão atarefado como nessa sexta-feira. Além das encomendas normais – entregar cartas, dar recados, pagar uma conta – estava encarregado de comprar alguns presentes e fazer vários convites verbais, tudo para o grande acontecimento do dia seguinte, sábado.

Até pensa em tomar nota, mas não precisava. Teria bastante tempo para relembrar tudo durante as 6 horas de viagem, em que estaria percorrendo velozmente a estrada de 170 quilômetros até Belo Horizonte, parando a cada sinal de passageiro.

Estacionaria também em toda bica de boa água, sem falar na meia hora de almoço. A partida ou chegada diária de ônibus é a única coisa que em Conceição tem o sabor da novidade.

Nessa sexta-feira, mesmo com a promessa de uma quebra total da rotina no dia seguinte, juntou gente em volta da jardineira. Como um certo interesse especial: ver quem não ia ficar para o sábado. Até o prefeito Duarte pôs a cabeça gorda e careca para fora de uma das muitas janelas de sua casa e espiou.

Os rapazes do ginásio, as moças do colégio, as crianças do grupo, as professorinhas já iam tomando conta da rua. Mas como aula é às 7, sempre dá tempo de dar uma olhadinha na partida. Dona Raulina, a beata, que nessas horas sai de casa toda de preto para a missa diária que não perde há anos, olha também.

E a turma se dispersa quando o ônibus vira na curva da estrada e não é mais possível ler o aviso “keep distance” da traseira.

Às 7 horas abrem as portas a Casa Lúcia do Niquinho (que tem presente para cada gosto) e a loja Adão, onde, segundo enorme e taxativa ordem escrita nas paredes de fora, deve-se entrar e comprar mais barato. Quando Niquinho e Adão começam a trabalhar, é sinal de que ninguém mais dorme na ativa comunidade conceicionense.

Reforma

Mais ou menos também às 7 horas, na casa do prefeito, na avenida, alguns metros abaixo das duas lojas, Levi Ferreira estava dirigindo os trabalhos de um grupo de pedreiros. Ele é o homem que faz de tudo: no dia seguinte serviria uísque aos respeitáveis senhores de azul-marinho, agora orientava a reforma na casa do prefeito, que tinha de estar pronta necessariamente até o sábado. A casa, construída há uns 150 anos ou mais, em puro colonial brasileiro, o prefeito Duarte herdou do seu sogro, o falecido João Turco, comerciante. E tratou de melhorá-la para o esperado sábado:
- Vamos colocar aí do lado uma porta dessa de vidro, moderna, que esse casarão não tem nem uma entrada decente, você entende?

Levi, apesar de especialista em limites de terra em Conceição (sabe a quem já
pertenceu cada metro do município e prova com documentos antiquíssimos), entendeu perfeitamente. E cuidou ele mesmo de apressar as coisas, de pintar com tinta prateada as peças de ferro do moderno portão encomendado pelo dono e, a quem observasse que aquela não era exatamente sua função, Levi respondia:
- Uai, pois não é amanhã o dia?
Quase 7 e meia, começavam a chegar à avenida os frequentadores habituais, para as conversas, os negócios.
- Comé, o homem chega hoje?
- Diz que chega.

Foi Teiado que, chegado com um jipinho velho – o Mosquito – perguntou a Antonio Geraldo, o dono do hotel-bar-restaurante, se estava confirmada a vinda do esperado engenheiro do DER. Teiado, além de dono da relojoaria Marçal, onde tudo se conserta, desde tampa de bule até fogão a gás, é moço preocupado com o progresso e os acontecimentos da cidade. Liderou a fundação da companhia telefônica, a instalação do repetidor de televisão (a cidade já tem 30 aparelhos) e agora empenha-se em conseguir capital para uma fábrica de farinha de mandioca.

O soldado Geraldo também já estava na avenida, gordo, bigodudo e imponente, andando para baixo e para cima, policiando, preocupado com o sábado, se daria muito serviço ou não.

Chicão, gordo e careca, estava, como sempre, na porta do seu bar, o Cantinho do Céu, desafiando quem passasse para uma partida de damas. Dizem que Chicão, além de campeão regional desse jogo, tem uns 30 milhões emprestados. Juquita, o barbeiro, estava preocupado com a chegada do sábado: só trabalha com hora marcada, e não tinha mais horários livres.

O delegado Zé Pimenta também está sempre ali por perto do Cantinho Do Céu. É um moço da cidade, que tentou ser investigador em Belo Horizonte, não conseguiu, à falta de outro, é responsável pela ordem em Conceição do Mato Dentro. Zezé da Ubaldina, dono do Hotel Ubaldina, passou perto dele, arregaçou as calças e olhou irônico. Com isso estava chamando Zé Pimenta de delegado calça curta, mas Zé Pimenta não ligou, pois não estava de serviço: “Ligo para isso quando estou na delegacia”.

Serviço

São 8 horas. Doutor Juvêncio, único médico que exerce a profissão num raio de muitos quilômetros, já tomou café e abriu a porta do consultório. Estava preocupado com duas coisas: a chegada do engenheiro do DER e o que vai acontecer no sábado.
Com esta sexta-feira, não se preocupava. Pois sabia exatamente que teria de atender a umas 20 consultas até as 11 horas, quase todas casos de verminose e subnutrição.
Depois das consultas e do almoço, se tudo der certo o doutor vai ter uma consulta com o engenheiro do DER.
Ao meio-dia ainda vai dar uma passada pelo hospital, para ver como estão os doentes internados e depois vai atender às consultas no Posto de Saúde. Faz muito tempo, todas as mães da cidade e até da roça preferem dar à luz no hospital. Se o doutor Juvêncio não está, dona Ziquinha, a robusta parteira, resolve muito bem o caso.
Depois da correria de consultório, hospital e posto, aparecerão as chamadas a domicílio, na certa. Sempre foi assim, desde 1943 quando completou seu curso e escolheu Conceição para clinicar. Pode ser até que numa dessas chamadas o treino do Esporte Clube Conceição seja perturbado, pois o doutor Juvêncio é o dono das camisas, da bola e do apito.

História

Quem chega à Conceição de automóvel, dá logo com a avenida. Virando a primeira à esquerda, depois de passar pelo correio, a matriz, a farmácia Guerra, e virando de novo à esquerda da loja do seu Rajão chega ao largo do mercado, que com a Igreja do Rosário é o sub-centro da cidade.
Nessa mesma sexta-feira, que antecedeu o tão aguardado acontecimento, estava por ali o Costa, homem já meio velho, paletó de brim, de venda em venda, esquina em esquina, tentando ouvir as novidades políticas e as incompreensíveis tendências dos eleitores. Mas o coronel Raposo, apelido que foi dado ao Costa por tudo que fez e aprontou nas eleições municipais, ouviu poucas novas.

Por mais que ele negue, a população insiste em contar a história da eleição do prefeito anterior: Raposo estava no ex- PSD, ainda não tinha passado para a extinta UDN. Seu candidato ganhava por 27 votos, mas faltava a votação de um distrito – Socorro - que seria feita depois, por falta de juiz. Raposo, por procuração, conseguiu requisitar os títulos de metade dos eleitores de Socorro que, com toda certeza, votariam na UDN. Na hora da votação foram solicitados os títulos ao coronel Raposo que ouviu até uma ameaça: é crime escondê-los. Mas os títulos não apareceram. Jurou, e até hoje jura, que não estavam com ele. Porém comenta-se que na ocasião o Raposo cochicou a um companheiro:
- Crime é perder a eleição.

Eis que, afinal, às 10 e meia, chega a hora do almoço do mestre Zé Júlio. Como sempre, conscienciosos garotos de Conceição, e até alguns adultos, iam espalhando pelo caminho latas vazias e bolas de papel, para que, durante o caminho, o mestre tenha uso para sua bengala, e possa praticar uma espécie de golfe só seu. Verdade que as latas às vezes não estão vazias e os papéis podem estar encobrindo substâncias não muito agradáveis. Mas Mestre Zé Júlio não liga.

Todo dia ele vem com uma nota de 10, 20 ou 50 cruzeiros dobrada na mão. Entra no bar de Antonio Geraldo, onde Raimundo, o barman do hotel (um dos melhores salários de Conceição, fora os bancários e funcionários: cama, comida, IAPC pago e 50 mil por mês), já coloca pinga num copo grande, e, de garrafa na mão, fica esperando o mestre que diz sempre a mesma coisa:
- Suj`ela.
É a ordem para misturar vinho. Naquela manhã, Raimundo observou:
- Mas o senhor devia descansar para beber mais amanhã.
- E eu sei lá o que vai ter amanhã?
Enquanto o mestre pagava, um grupo com ar meio misterioso foi-se juntando lá fora.
Entre eles estava o Zé Pedro da Silva, Zezinho, do IBGE, e presidente da Cia. Telefônica. Junto com

Teiado, foi ele que convenceu o povo a comprar telefones. Muita gente era contra e dizem que até o prefeito Duarte, partidário da idéia de que em Conceição quando se quer falar com alguém basta sair na rua e dar um grito, só tem o aparelho porque a família insistiu muito.

Teiado fechou a lojinha que conserta tudo e também foi juntar-se ao grupo. Outro que estava com eles era o Niquinho, da Casa Lúcia. Doutor Osmar, dentista e dono de um dos 3 carros de passeio da cidade, interrompeu seus planos de pescaria e futebol para estar ali também. O quinto homem era o doutor Juvêncio.

Esses senhores formam o diretório local do extinto PSD, do qual Juvêncio é o presidente. Entraram no bar de Antonio Geraldo, que é juiz de paz eleito pelo ex-PSD, e conferenciaram. O objetivo era esse: o ex-PSD, oposição, precisa ficar popular para vencer as próximas eleições. Aproveitando que o prefeito “prometeu muito e não fez nada”, além de já estar sozinho, abandonado pela ex-UDN, foram reivindicar, por conta própria, junto ao engenheiro do DER uma residência (repartição) de Departamento para Conceição. O engenheiro já tinha chegado, estava almoçando no reservado do hotel e disse que por enquanto não seria possível. Eles deixaram para insistir mais tarde.

Chegada

Zezé da Ubaldina não é homem que perca tempo. Mal vê o ônibus vir chegando, lá em cima, corre para o ponto. Ainda mais naquele dia, sabendo que muita gente podia chegar para o sábado, queria colocar sua pensão diretamente às ordens. Mas Zezé nunca oferece diretamente seu hotel:
- Eu fico ali, tentando cruzar meu olhar com o dos estranhos. Até que o fulano me pergunta qual é o melhor hotel. Eu digo que sou suspeito prá dizer, pois até tenho um. E pronto.

O resto da cidade, sem o mesmo interesse do Zezé, está curiosíssimo para ver quem chega. Únicas desinteressadas são algumas mocinhas que passeiam perto do ponto de desembarque. Todos os dias, por coincidência na hora da chegada do ônibus, elas estão por ali, bem arrumadinhas, como quem não quer nada. É como diz o seu Nico Floresta, fazendeiro, funcionário e pai de moça solteira:

- Tenho muito dó das moças de Conceição. Os moços vão embora. As
moças se formam na escola normal, ficam lecionando, e não tem com quem casar. A solução é mesmo esperar o ônibus, quem sabe desce algum viajante solteiro?

Com grande acontecimento ou não para o sábado, a cidade descansa entre a chegada do ônibus ao meio-dia, e 4 da tarde, fim das aulas. O sol quentíssimo. As ruas desertas. O silêncio absoluto, só quebrado por alguma gargalhada de Siá Fina, senhora muito normal que tem a mania de rir alto pela rua. Também quebra o silêncio o canto dos meninos pobres, tocando o burrico que carrega lenha:
- Saltei de para-quedas, o para-quedas não abriu. Mandei o motorista pra…
- Cala a boca, menino!

Tardinha


Depois de ler o jornal de quinta-feira, que chegou sexta pelo Correio – Conceição não tem jornal – seu Guerra, presidente da extinta UDN, vice-prefeito e dono da farmácia, vendeu uma caixinha de pílulas anticoncepcionais (são 60 que vende por mês, ao todo) e ficou na porta, esperando sua turma. Ali pelas 6 horas estaria na farmácia a cúpula udenista, o Coronel Raposo, o Zé Nito, o professor Rocha, o Gastão e mais alguns. O assunto, nos últimos meses, é tomar conta da Arena, que o ex-PSD também quer. O assunto, na sexta-feira, foi como seriam os acontecimentos de sábado.

Não fosse pelo dia seguinte, o comércio fecharia às 7 horas da noite, depois de completadas suas 12 horas de serviço. Mas em sexta-feira tão promissora, só mesmo às 8 Niquinho e Adão, que vendem de tudo, fecharam as portas.

Bem pouco se faz à noite em Conceição do Mato dentro, além de dormir. As moças raramente voltam para casa acompanhadas, tão escassos os acompanhantes. E, de qualquer modo, às 9 da noite, de um jeito ou de outro, estão em casa, que é muito feio moça ficar na rua depois dessa hora.

Algumas, certas de que não vai adiantar nada ir até a avenida, jogam buraco na casa do seu Nico Floresta, com um baralho onde faltam um 7 de paus e um Rei de ouro. Ele próprio, seu Nico, prefere um joguinho de víspora na cozinha do Hotel Cuiabá. Joguinho que o deixou muito preocupado naquela sexta-feira, pois perdeu 270 cruzeiros.

Os namoros de Conceição quase nunca são no portão da casa, pois os 11 zeladores do decoro público, fardados de caqui, não querem nem saber. Namoro na rua depois das 9 é proibido. O soldado Geraldo já pegou muita moça na rua e levou até o pai, para evitar outras consequências.

A televisão só funciona depois das 10 noite, por falta de luz, e o cinema, Conceição tem sim, ninguém diga que não:
- Só que agora está em férias, faz uns 3 meses.
Os namoros são, portanto, sempre dentro de casa, e na frente da mãe. E podem acontecer coisas engraçadas, numa cidade onde quase todo mundo é parente. É o caso do Geraldo Brás, que chamou a namorada Mirtilinha e escutou:
- O senhor me chamou, tio?

Hugo Martins, conceicionense bem sucedido em Belo Horizonte, bebendo cerveja numa roda de bar, às 10 horas da noite de sexta-feira disse que nunca viu tanta expectativa por um acontecimento, em Conceição, como nesses dias que antecederam o sábado. A não ser quando, muitos anos atrás, Neiva, o coletor, anunciou que ia suicidar-se, dia tal às tantas horas, e encomendou ao Joaquim da Dusina um caixão na medida. Herói da história virou o Joaquim, que foi ameaçado de cadeia, se entregasse o caixão, mas nem ligou. No dia combinado botou o esquife na cabeça, desceu embalado a ladeira e fez a entrega. Só que o Neiva não o usou, e mudou de cidade.

Luiz Cambeba, outro conceicionense bem posto na vida, concordou que o caso do suicídio foi falado, mas nem tanto como o acontecimento do sábado. E aproveitou quando lhe deram a palavra, para mostrar suas 10 carteirinhas (usa 14, mas esqueceu 4 em casa), de ex-combatente, de motorista da Petrobrás, duas de clubes de carnaval, duas de crediaristas e outras parecidas.

Nessa hora, mais ou menos, acaba o jogo de pôquer na casa do Guerra, o farmacêutico vice-prefeito. Não se deve jogar além de 11 horas, em Conceição do Mato Dentro. No bar do Macedo, único onde há Brahma, casco escuro, outra turma estava bebendo, fazendo hora, para começar bem o sábado. Toni, o advogado, Tarcísio, estudante que também dá aulas na escola de comércio; Honorinho, dono de um violão; Décio dono de outro; e Antonio só esperavam a hora certa da serenata.

O prefeito Duarte, tomando ar na porta de casa, sozinho, pensava no dia seguinte e na vida também. Quer deixar o cargo logo para o vice-prefeito (embora se diga à boca pequena que o Guerra não aceita a prefeitura como está). Quer assumir, em Belo Horizonte, o lugar de Procurador da Justiça, conseguido pela sua longa carreira de advogado cheio de lábia. Mas também pensava nas placas que puseram pela cidade – É proibido caçar, no capim da rua; e É proibido pescar, nas poças d´água.

Duas horas da manhã, os moços já fizeram a serenata. Talvez haja mais, mas preferem antes passar pelo bar do Mandi, lá na Bandeirinha, que deve estar fechado, mas duas batidas e a porta se abrirá para uma pinga com banana verde de tira gosto. Mandi abre seu bar numa hora em que nem Natália e Chiquita, as prostitutas, recebem mais ninguém.

Dia novo

Enfim, sábado.
Zé Júlio já acordou Antonio Geraldo, o ônibus já partiu, as lojas já abriram.
Só houve movimento de estudantes, pois aos sábados, com exceção para as normalistas, não há aula para ninguém.

Em compensação, é o dia do mercado funcionar, com gente vendendo rapadura, abobrinha, ovo, carne, pão e toda a produção agrícola do município. A cidade vai às compras. Numa rodinha de gente, no mercado, o preto Meuzóio estava contando que, na hora de sair da cadeia, disse que se um dia voltasse lá ia ser por motivo justo, não por cachaça. Ele foi o único homem que até hoje bateu no juiz de direito. Foi um dia que se cruzaram na estrada: o preto, muito caolho, foi chicotear o burro, não viu a autoridade, deu-lhe com o chicote na cara.
- Que é isso, negro sem-vergonha?
- Discurpe, doutor, foi o meuzóio.
E o Meuzóio, Meuzóio se chamou. A costureira Daisy já entregou todos os vestidos encomendados para o sábado. As moças não foram nem ao Poço do Sossego, nem ao Poço do Padre Elói, onde aos sábados e domingos passam as tardes nadando, tomando sol, lendo fotonovelas ou jogando buraco. Foram todas à cabeleireira e, no salão de Dona Hilda, as conversas deixaram ser a briga da Idelma com o Antonio Magno, ou outros namorados, para se transformar em palavras de expectativa e previsão sobre as coisas que se iam desenrolar logo mais, à tarde. Nem à missa iriam nesse sábado (a missa de sábado vale para domingo), prefeririam a do próprio domingo. Mesmo porque, a missa das 7 sairia atrasada, visto ser necessária a presença do frei Eduardo nos acontecimentos da tarde.

Banda

- Minha filha, vê se tem água na talha, que chegou visita.
Mestre Janjão, velho alfaiate, diretor da banda de baixo (a de cima não existe mais) recebeu os amigos com uma cachacinha, da legítima de Conceição. A banda, que recebeu de seu pai, já chegou a ter só elementos de sua família. E por falta de gente, lançou mão das moças, para tocar, e achou-as melhores que os marmanjos.
- Como é mestre, a banda sai hoje?
- Não. Não sai, porque não ensaiamos, e também porque não é o caso de se precisar de banda.
Na avenida, movimento intenso. O escritor local, do seu quartinho na pensão Ubaldina cuja porta ele só abre para receber visita, ir comer ou pegar o penico limpo no corredor, fez uma pausa na revisão do seu último livro , o “Fuhiziana (Verso e Reverso)” para ver a gente na rua. José Honório Pinto Coelho já publicou 5 livros: “O Engenheiro das Selvas”, “Mulher é sempre Mulher”, O Fantasma do Viaduto” e o “Menino da Roça”, este escrito em ortografia antiga, para seu pai, que não entendeu a reforma ortográfica, poder ler.

Epílogo

Chegou a noite de sábado.
Os homens todos de terno escuro e as moças, penteadas e pintadas, subiram a ladeira da igreja do Santuário de Bom Jesus do Matosinhos, para assistir ao grande evento.
Uma turma não foi: os trabalhadores que fazem parte do clube da lagoinha, base eleitoral do deputado da cidade; eles ficaram bebendo no bar de Antonio Geraldo. O deputado também ficou, empenhado em levá-los para a comemoração, na casa do prefeito, e provar assim que Duarte não é tão impopular como dizem.

Na igreja, muita gente impaciente para ver a festa do ano, que mexeu com toda Conceição: Eliana, filha do prefeito ia casar com Zanoni, funcionário da agência local do Banco do Brasil. E a cidade, elegantíssima, vive a emoção do esperado momento: Duarte entra na igreja, orgulhoso, de braço dado com a filha.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)