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O massacre de Dandara em Palmares
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Dandara não tinha medo de ser mulher

Travesti assassinada em Fortaleza é lembrada pelo bom humor e alegria, que contrastam com histórico de sofrimento. Quase um mês depois do crime, vizinhança continua de luto

Flávia Ayer, Fred Bottrel - Enviados Especiais

Assim que chegou em casa, no Conjunto Ceará, periferia de Fortaleza, num dia qualquer de 1984, a cantineira Francisca Ferreira de Vasconcelos, de 74 anos, se deparou como uma de suas 10 crianças dançando igual a cantora Gretchen, famosa pelo rebolado. A mãe não titubeou em levá-la ao médico. “Cleilson tinha 10 anos e eu queria saber se era homem ou mulher”, lembra Francisca. O médico disse que era homem. Dandara Kataryne, espancada aos 42 anos até a morte, quis ser mulher. A alma feminina por trás dos olhos azuis esverdeados aflorou oito anos depois, aos 18, em cima do salto alto e esbanjando confiança em shorts curtos e blusas decotadas.

Fred Bottrel/EM/DA Press


Dandara virou personagem do bairro, que, quase um mês depois de seu assassinato, está de luto. “Ela passava toda pintada, de salto alto. Era uma menina muito boa. Chamava todo mundo de rainha, amiga”, lamenta a vizinha Luíza Maria Ferreira, a Iza, de 66. Com a melhor amiga, Estelina Bevilaqua, de 43, trocava confidências e dicas de beleza. “Falava para eu usar calcinha fio dental, porque valorizava o corpo”, conta, revelando os segredos. “Era muito sensível. Tinha um complexo porque não se realizou profissionalmente e não tinha um companheiro legal”, diz Estelina, chorando. As duas chegaram a morar juntas, na época em que Dandara começou a se revelar. "Ela tinha uma alma de mulher", diz.


"Meu filho morreu por preconceito" - Francisca Ferreira, mãe de Dandara

Dandara jogava bem futebol e sempre gostou de animais. Desde a infância, sonhava em ser veterinária, porém não concluiu o ensino fundamental. A família apostava no seu talento como cabeleireira ou no humor – a saber, o Ceará é conhecido como a terra de grandes humoristas. “Era para ser artista”, diz a mãe. Mas, com a irmã caçula, a também travesti Sheila, Dandara fez a vida na prostituição. Somente por uma década, Dandara esteve longe da vizinhança. Nos anos 2000, ela e Sheila foram para São Paulo e chegaram a morar alguns meses em Belo Horizonte.

 

Fred Bottrel/EM/DA Press
 


VOLTA PARA CASA Voltou para casa da mãe 10 anos depois, fraca e infectada pelo vírus HIV. “Peguei até empréstimo para comprar comida para ele”, diz Francisca, que, com o acolhimento de mãe, trata Dandara ainda no masculino. A travesti nunca escondeu a doença e andava com os bolsos cheios de preservativos, mesmo quando o destino não era a Praia de Iracema, ponto de prostituição na capital cearense. O bom humor contrastava com um histórico de agressões e dor. Num episódio, ela foi estuprada e espancada por quatro homens. Conseguiu fugir e se salvou. Sofrimento maior teve com a morte de Sheila, também soropositiva e vítima de um tumor na cabeça. Um baque para a família.


"Ela tinha uma alma de mulher" - Estelina Belivaqua, amiga de Dandara


Nos últimos quatro meses, a doença de Dandara, displicente com os medicamentos, acentuou-se. “Não aguentava nem usar sandália alta”, comenta Francisca. Sem fazer programas, vendia roupas usadas que ganhava dos amigos e ajudava vizinhos buscando pão ou em tarefas domésticas. Nunca deixou de ajudar a mãe em casa, apesar da Aids e do vício. “Se ela ganhava R$ 10, R$ 5 era para a pedra e R$ 5 era para mãe”, conta a irmã, Soraia Vasconcelos, de 44, lembrando o quanto a irmã era amada. O enterro de Dandara foi todo pago com doações de vizinhos e amigos. “Já viu isso acontecer? Os vizinhos ficaram doentes com a morte dela”, conta.

A amiga Érica Assis, de 30, contratou do próprio bolso um ônibus para levar à vizinhança ao velório da travesti. Difícil para ela vai ser esquecer das gargalhadas junto da amiga e da última vez que estiveram na praia. “Dandara usava fio dental mesmo. Não entra na cabeça da gente tanta raiva de quem nem a conhecia”, afirma. Outra amiga, Vitória Holanda, de 42, lembra com emoção: “Era uma inocente, do bem, prestativa”. Na manhã do dia do crime, Dandara esteve na casa dela ajudando com a arrumação. Por ser investigadora da Polícia Civil e trabalhar na área, Vitória está ajudando na apuração das circunstâncias da morte de Dandara. Mas o coração de mãe de dona Francisca não espera o resultado e sentencia: “Meu filho morreu por preconceito. Morreu com idade prematura. Só pode ser uma missão que Jesus deu para ela mudar o Brasil e o mundo”.


'SANTA DANDARA'

A travesti de 42 anos gostava de ser chamada de Dandara Kataryne. Não se sabe a razão, mas ficou conhecida como Dandara dos Santos após a morte em beco da periferia de Fortaleza (acima). "Esse nome deve ser porque ela lutou muito e virou santa", especula a irmã, Sandra Vasconcelos. Apesar de escolher o nome feminino, foi sepultada com a identificação masculina que carregava na carteira de identidade.